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Há um século, os primeiros dias do ano não constituíram grande presságio para o que aí vinha. Entre uma manada de bois selvagens à desfilada pelas ruas de Lisboa, o eclipse do sol, a carestia de vida e a sucessão de governos, o rebentamento de engenhos explosivos e o desaparecimento de Sacadura Cabral no nevoeiro do Mar do Norte, os portugueses tinham pouco com que se alegrar. Sentiam-se ventos de mudança, só ainda não se sabia em que sentido.
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Há 100 anos, Portugal encontrava-se numa encruzilhada. Só durante 1925, os portugueses experimentaram cinco governos, entre “canhotos”, “bonzos” e outros executivos tão fugazes que o povo nem teve tempo de lhes inventar alcunha. Foram dois os presidentes, Manuel Teixeira Gomes (na imagem, ao centro), que se demitiu já no final do ano, e Bernardino Machado, que já havia ocupado este cargo, fazendo o favor de levar o fardo até ao estertor final da 1ª República, que se verificaria em maio do ano seguinte, mas ainda ninguém previa. Logo em janeiro, o ano não se apresentava promissor.
Na madrugada de dia 2, a população de Lisboa acordou em sobressalto com uma manada de 500 bois bravos à desfilada por várias artérias, entre Alcântara e o Alto da Cruz do Tabuado, encaminhados por diligentes campinos que, como em dia de tourada, tentavam a todo o custo conter o tropel.
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Terminavam ali, no matadouro da cidade (na imagem), a sua última viagem, iniciada na Argentina, a bordo do Dionisios Stabata.
Já na véspera, a chegada do cargueiro tinha motivado a aglomeração de curiosos, para vislumbrar o gado estrangeiro e as manobras para o descarregar em segurança. Pelo aparato, dir-se-ia que tinha chegado um qualquer dignitário internacional: à zona portuária afluíram o embaixador e o cônsul argentinos, o adido militar espanhol e ainda outras pessoas importantes relacionadas com o negócio e a autarquia lisboeta.
Com esta importação direta, tentava a câmara da capital obviar ao incontrolado aumento do preço da carne.
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A carestia, aliás, era uma das principais preocupações dos portugueses por aqueles dias, com os alimentos e o gás a atingirem preços incomportáveis para os magros salários, quando os havia.
De facto, imperava uma crise de trabalho. Estimava-se que dois mil operários pedissem esmola na cidade, mendigando uma qualquer ocupação que pudesse ajudar a pagar o sustento. Somavam-se às ranchadas de crianças que, da mesma forma, lutavam pela sobrevivência.
Como se não bastasse, a 10 de janeiro de 1925, com os tripulantes dos Fokker portugueses que empreendiam mais uma missão aérea, chegam as trágicas notícias. Depois de ter sido aclamado como um herói e alvo de homenagens em todo o País, devido à épica travessia do Atlântico-Sul, em 1922, Sacadura Cabral desaparecia no nevoeiro, algures sobre o Mar do Norte. Os destroços do seu avião, recuperados quatro dias depois, selaram a morte do destemido aviador, que nunca foi encontrado.
Chorou-se o fenecimento deste bravo português e de tantos que não ficaram para a história, até porque a par dos desastres aéreos, a insegurança era uma realidade nos inícios de 1925.
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No Dia de Reis, um padeiro foi assassinado por sindicalistas; um assalto – que depois se provou fictício e fruto de desavenças entre o prior e a freguesia – levou pratas e outros bens da Igreja de São Vicente; roubaram a ourivesaria Lory (ao Rossio), havia dinheiro falso a circular e os 600 presos que partilhavam as celas infectas do Limoeiro viviam em motim permanente. No dia 16, a noite portuense foi agitada pela explosão de dois engenhos explosivos e, a 24, outra bomba é “plantada” à porta da Câmara Municipal de Lisboa.
As primeiras boas notícias só lá para meados do mês: a fartura de peixe fora tanta, que o seu preço caiu a pique, beneficiando os mais necessitados, que só assim o puderam comprar ou até receber gratuitamente, porque houve armadores que preferiram dar o pescado à caridade do que o vender ao desbarato.
Nos talhos, enfim, viam-se os primeiros sinais da abundância, cheios que estavam com carne das pampas, perspetivando-se novos carregamentos mensais até ao verão, altura em que se esperava haver já carne alentejana gordinha o suficiente para alimentar os grandes centros.
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Mas, como não há bela sem senão, incompreensivelmente, o preço da carne aumentou um escudo e o pão também escalaria, com o naufrágio de um navio carregado com trigo.
Do estrangeiro vinham ecos de mudança. Mussolini mandava fechar clubs, restaurantes, “casas de bebidas suspeitas” e organizações subversivas, efetuando buscas domiciliárias e prendendo a eito indivíduos que o seu novo regime classificava como perigosos.
Em Portugal, seguiram-se meses de agonia da ainda jovem República, que havia sido implantada apenas 15 anos antes, mas já dava mostras de não ser para durar, tal o tumulto, a instabilidade e o desgoverno.
Foram duas as revoltas militares de monta registadas nesse ano: o golpe dos generais, a 18 de abril, e a revolta de Mendes Cabeçadas (19 de julho). Ensaios para o que iria concretizar-se em 1926 e mudaria a face política do País para as décadas seguintes.
Sintomaticamente, o filme Couraçado Poutenkin, uma peça de propaganda comunista considerado obra marcante também do ponto de vista da história do cinema, que estrearia no Teatro Bolshoi de Moscovo a 21 de dezembro de 1925, só seria visto entre nós a 2 de maio de 1974 (!) no Cinema Império, precisamente quando o nosso poderio “universal” se desmoronava, mas readquiríamos a liberdade de expressão.
À margem
No início de 1925, os faits divers construíam-se à volta dos desafios que as marcas de automóveis lançavam umas às outras, discutindo que modelos eram mais rápidos, eficientes e resistentes. O futebol já reclamava atenção, com os primeiros jogos da segunda volta do Campeonato de Lisboa, que provocaram o corte de relações entre o Sporting Clube de Portugal e o Casa Pia.
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Falava-se também do início da construção do Metro de Lisboa, que seria a primeira rede do país, mas então não passava de uma curiosidade, porque só avançaria 30 anos depois. Não admira, pois a capital sonhava com caminhos subterrâneos, quando, à superfície, as ruas continuavam em terra batida e só então começaram a ser condignamente pavimentadas (na imagem, o Rossio, após a intervenção desse ano).
Mas, nem tudo foi mau em 1925, apesar dos maus prenúncios que alguns viram no eclipse do sol, que ocorreu a 24 de janeiro.
Comemorou-se o 4º centenário de Vasco da Gama, inaugurou-se a carreira regular de navegação para a América do Norte, a Brazileira do Chiado abriu as suas portas (paredes) aos pintores modernistas, provocando uma verdadeira revolução artística e, coincidência ou não, enquanto a opereta Benamôr ocupava o palco do S. Luíz, é fundada a companhia de cosmética com o mesmo nome, ainda hoje uma referência do sector. Nem tudo estava perdido.
No parlamento, talvez para que se ouvissem ainda melhor as acusações, críticas e insultos que por ali abundavam – sinal do progresso – foram instalados dois novíssimos microfones.
Mas isso é outra história...
Fontes
Diário de Lisboa
Cc | Diário de Lisboa | 1921-1990
01.01.1925 – 30.01.1925
https://www.infopedia.pt/artigos/$o-couracado-potemkin
https://www.metrolisboa.pt/institucional/conhecer/historia-do-metro/
Benamôr1925 | Natural Cosmetics – Benamôr 1925
A revolução no Chiado que foram os quadros da Brasileira
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000782, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000857, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000864, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000656
Alberto Carlos Lima, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000927
Eduardo Portugal, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/000281, PT/AMLSB/POR/000416
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001461