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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Pela imprensa (30): unic[as] e irrepetíveis fitas

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Há aquelas invenções que, pela sua simplicidade e alardeada eficácia, parecem geniais. À distância, tendo em conta que não prevaleceram no tempo, talvez não fossem tão brilhantes como à partida se poderia pensar. Assim se passou com as extraordinárias fitas “Unic”, a salvação de qualquer cavalheiro orgulhoso do seu aprumo e elegância.

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Em 1925, os jornais mostravam anúncios que davam conta desta maravilhosa criação de origem britânica. De facto, quem mais poderia ter dado ao mundo uma fita cuja função é manter as calças masculinas sempre impecavelmente vincadas e engomadas, senão os súbditos de sua majestade Jorge V, alegadamente sempre tão esticadinhos e impecáveis nas suas indumentárias?

Precisamente! As fitas “Unic”, provavelmente aparentadas com a entretela, mantinham-se coladas ao tecido, garantindo um vinco eterno e a ausência de joelheiras, para além de serem resistentes à água.

Eram, afiançava-se, a diferença entre um ar de pobreza e abandono e o aspeto distinto e elegante a que qualquer gentleman aspira. Com tantas vantagens, também se poupava dinheiro e trabalho, já que a aplicação destas fitas prevenia que fosse novamente necessário passar a ferro.

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Tudo isto por apenas 7 escudos, à disposição na Maison Blanche, no Rossio - 16 (na imagem), ali, a dois passos do Café Nicola, que em 1925 não existia, uma vez que o “antigo” havia encerrado em 1834 e o atual só abriria as portas quatro anos depois deste esplendido anúncio ser publicado.

Este ano, por outro lado, foi de mudança naquela emblemática praça lisboeta, com a replantação de árvores, indo ao encontro da vontade popular à qual muito tinha desagradado a desarborização anterior, levada a cabo pelo município.

 

Fontes

Fundação Mário Soares, Casa Comum, em linha

http://casacomum.org/cc/diario_de_lisboa/

Diário de Lisboa, 03/04/1925

https://arquivomunicipal3.cm-lisboa.pt/X-arqWEB/

https://restosdecoleccao.blogspot.com/2016/11/cafe-nicola.html

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel, Estabelecimento Maison Blanch ornamentada para o IV Congresso Internacional de Turismo, em 1911, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000425

As máquinas de ressuscitar de Pina Manique

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O Intendente-Geral da Polícia era tão poderoso que nem os suicidas podiam morrer descansados: mandou vir máquinas para dar vida aos mortos, um tratamento que tinha o fumo do tabaco como "princípio ativo", insuflado por um orifício…que não era a boca. Estranham-se, pois, os sucessos relatados, com a sua utilização.

 

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Diogo Inácio de Pina Manique ocupou em simultâneo e sucessivamente um vasto conjunto de altos cargos, que o tornaram, durante muitos anos, um dos mais poderosos homens do reino. Como se não bastassem todas as responsabilidades oficiais que congregava, ainda teve disponibilidade para se intrometer em assuntos que, à partida, nada tinham que ver com as suas esferas de domínio. Foi assim que se tornou patrono de jovens artistas e aspirantes a ginecologistas enviados para estudar no estrangeiro, foi um dos fundadores do Real Teatro de São Carlos e importou máquinas de ressuscitar que mandou distribuir para que pudessem ajudar a salvar vidas…através da defumação com emanações de tabaco.

Estava então entre as preocupações das mentes esclarecidas a questão da morte aparente e dos sinais inequívocos de falecimento. Os conhecimentos científicos eram rudimentares e Pina Manique soube da invenção, em Londres, de um aparelho que devolvia a vida aos afogados e apopléticos, prometendo também excelentes resultados em diagnósticos de torpores e catarral, o que, aliás, teria sido comprovado numa das principais figuras de Lisboa e era já amplamente usado em França e Inglaterra, por exemplo.

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Em 1789, encomendou então um conjunto destes equipamentos, com os quais dotou o hospital militar e o de São José, algumas casas religiosas e outros locais fora de Lisboa, para além de ter reservado uns quantos nas instalações da “sua” Casa Pia, para emprestar aos médicos que, em caso de emergência, necessitassem de os utilizar.

O conceito era o mesmo dos atuais desfibriladores que se tornaram obrigatórios em espaços muito frequentados, embora seja difícil aceitar que estas máquinas de ressuscitar pudessem ter algum efeito, já que a sua ação consistia na introdução repetida de fumo de tabaco pelo ânus do moribundo.

Isso era, pelo menos, o que preconizavam as instruções do inventor, John Mudge, mas não era a prática dos físicos portugueses, que as achavam pouco eficazes. Talvez por isso se registassem alguns sucessos na sua utilização.

Na realidade, só após reanimarem as pessoas é que os nossos especialistas lá anuíam em introduzir o fumo pelo orifício recomendado pelo criador do engenho, só para não parecer que desdenhavam dos seus ensinamentos.

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Os casos mais falados na época foram o de um ourives da rua da Prata cujos vizinhos, estranhando ver a porta do estabelecimento encerrada por dias, resolveram arrombá-la. Encontrando-o inanimado, chamou-se alguém para verificar o passamento e elaborar o auto, mas, em vez disso, depois de algumas horas de labuta, acabou por ser devolvido ao mundo dos vivos.

O mesmo aconteceu, no mesmo mês e ano, com João Policarpo, que se havia enforcado e foi levado como morto ao hospital de São José, sem pulso ou respiração. Não lhe valendo as primeiras intervenções a que foi sujeito – pés em água quente e ventosas – mandaram-no enterrar. Não convencido, o cirurgião António de Almeida foi buscar o fumigador e inseriu-lhe fumo pela boca e, depois de sucessivas tentativas, teve um estremecimento e um violento vómito, com o qual voltou a si. Pouco tempo depois, já falava e comia.

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Finalmente, uma menina caiu num poço, na fábrica de vidro Stephens, na Marinha Grande, tendo-se afogado. Novamente, lhe introduziram fumo enchendo o bofe e a salvaram.

Estes êxitos eram acompanhados de perto pelo Intendente-Geral da Polícia, que chegou a agraciar os salvadores com dinheiro e louvores.

O tema do resgate de vidas prestes a esvanecerem-se, ou da recuperação de quem se pensa estar já “do lado de lá”, interessava sobremaneira a Pina Manique, que fez traduzir e publicar, com correções e distribuição alargada, folhetos sobre primeiros-socorros e reanimação, nos quais se aludia a experiências com eletricidade e se aconselhava a que, sem o aval de um médico sábio, não se procedesse a sangrias, uma operação corriqueira a que até os barbeiros recorriam.

Deu também indicações para que se autopsiassem as pessoas que morriam subitamente, para se aferir da causa da morte e se perceber de que forma poderiam ter sido socorridas e salvas.

É claro que estas preocupações e as ações desenvolvidas não eram totalmente isentas de segundas intenções e acabaram por aumentar o prestígio de Diogo Inácio, nomeadamente fora de portas, com a sua nomeação como diretor honorário da Real Sociedade Humanitária de Londres.

 

À margem

É difícil sintetizar toda a atividade de Pina Manique, tão abrangente se manifestou. Das obras públicas, à segurança; da higiene pública, à prevenção e combate às epidemias; do recenseamento da população, classes profissionais e comerciais, ao controlo das alfândegas; das artes à assistência social, as suas competências extravasaram em muito as de um mero Intendente-Geral da Polícia, cargo pelo qual ficou mais conhecido.

Obviamente que tamanho poder e, por vezes, ingerência em interesses e poderes instalados, resultou em numerosas críticas e um exército de inimigos prontos a atacar. Manique também não esteve isento de medidas duras e impopulares: em 1777, por exemplo, a mando do Marquês de Pombal, executou a destruição pelo fogo da aldeia da Trafaria.

A sua maior obra terá sido, eventualmente, a Casa Pia de Lisboa, inaugurada com grande aparato em 3 de julho de 1780 e destinada a recolher adultos e menores necessitados de assistência, nomeadamente órfãos, mendigos e meretrizes, aos quais era dada formação em diversos ofícios, retirando-os das ruas.

Não deixa de ser curioso que o largo onde morou e a que foi dado o nome do Intendente Pina Manique, que tanto pugnou para “limpar” o espaço público de indesejáveis, tenha sido, durante muito tempo, reconhecido como um dos principais locais de marginalidade e prostituição de Lisboa

Mas isso é outra história…

 

 

Fontes

José Norton, Pina Manique, Fundador da Casa pia de lisboa, Lisboa, Bertrand Editora, Chiado, 2004.

Augusto da Silva Carvalho, Pina Manique, O Ditador Sanitário, Lisboa, Archivo de Medicina Legal, Imprensa Nacional, 1939, disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, em www.purl.pt

Jean Luiz Neves Abreu, Morte Aparente e Práticas de Reanimação: Um Estudo a Partir da Literatura Médica no Contexto da Ilustração em Portugal (1770-1818), in Projeto História, São Paulo, v. 75, pp. 169-194, Universidade Federal da Uberlândia, set.-dez., 2022. Disponível em: https://orcid.org/0000-0003-0500-6287

 

Imagens

https://wellcomecollection.org/works/quwa57z5/items?canvas=261 e https://wellcomecollection.org/works/fh9naxm8/items obtidos em Jean Luiz Neves Abreu, Morte Aparente e Práticas de Reanimação: Um Estudo a Partir da Literatura Médica no Contexto da Ilustração em Portugal (1770-1818), in Projeto História, São Paulo, v. 75, pp. 169-194, Universidade Federal da Uberlândia, set.-dez., 2022. Disponível em: https://orcid.org/0000-0003-0500-6287

Augusto da Silva Carvalho, Pina Manique, O Ditador Sanitário, Lisboa, Archivo de Medicina Legal, Imprensa Nacional, 1939, disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, em www.purl.pt

https://jpcnortonm.wordpress.com/2020/03/24/a-maquina-de-ressuscitar/

https://www.google.com/imgres?q=ressuscitar%20afogados%20antigo&imgurl=https%3A%2F%2Fjpcnortonm.wordpress.com%2Fwp-content%2Fuploads%2F2020%2F03%2Fclister.jpg%3Fw%3D591&imgrefurl=https%3A%2F%2Fjpcnortonm.wordpress.com%2F2020%2F03%2F24%2Fa-maquina-de-ressuscitar%2F&docid=n-zhChsqtoDSTM&tbnid=_7mDjCi1Ixl2mM&vet=12ahUKEwj6i5665-iKAxUmX_EDHWSSLcAQM3oECBcQAA..i&w=591&h=800&hcb=2&ved=2ahUKEwj6i5665-iKAxUmX_EDHWSSLcAQM3oECBcQAA

Instantâneos (120): retalhos da vida de um morto

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Tatuagem é marca indelével que permanece na pele até à morte. É coisa de marginais, gente de mau porte associada ao mundo do crime. Apesar de nenhuma destas afirmações corresponder hoje à realidade, assim foi durante séculos e, por isso, os desenhos das tatuagens faziam parte, como demais marcas físicas particulares, das fichas dos cadastrados, copiados por funcionários diligentes, entre outras indicações específicas que ajudariam a identificar os criminosos.

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Até que um médico português teve a brilhante ideia de esfolar o indivíduo tatuado para dele extrair a epiderme decorada e, com isso, de forma mais documentada, estudar os elementos gráficos presentes, retirando daí informação sobre a índole e a origem do morto.

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Foi assim que se chegou a uma insólita coleção de cerca de 70 retalhos de pele com medidas que variam entre os cinco e os 50 centímetro. Conservados em formaldeído, foram recolhidos entre 1910 e 1940, apresentando-se como autênticos testemunhos íntimos das vidas e paixões dos seus finados possuidores.

Eram maioritariamente homens dos bairros tradicionais de Lisboa, dados à fadistagem, ao desacato e aos pequenos crimes, que se apresentam como fragateiros, vendedores de rua, pedreiros, marinheiros, caldeireiros, pintores.

As mulheres tatuadas eram, predominantemente, “domésticas” e meretrizes.

Só estes grupos à margem da restante sociedade bem-comportada ousavam blasfemar, conspurcando com desenhos e escritos a sagrada pureza do corpo que Deus lhes havia dado.

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Poucos destes exemplares primam pela genialidade das linhas.

São arte popular, toscamente traçada em condições difíceis e com instrumentos rudimentares, por um amigo ou camarada.

Revelam os gostos daquele que decidiu ser tela ambulante.

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Apesar da elevadíssima taxa de analfabetismo entre estes grupos, predominam frases (juras de amor, afirmações políticas), nomes e datas.

Marcas de paixões feridas, representações obscenas, contrastando com os santos da devoção de quem assim se pintava, animais e criaturas excêntricas… marcas de prevaricação, que decoram várias partes do corpo, sobretudo os braços e peito, junto ao coração.

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É uma coleção única no mundo, não porque mais ninguém se tenha dedicado a reunir tão curiosas frações do corpo humano, mas sim porque é acompanhada de meticulosa informação sobre o contexto em que foi produzida.

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Devemo-la à iniciativa de Rodolfo Xavier da Silva médico e diretor do Instituto de Criminologia de Lisboa, que chegaria a ministro da então jovem República Portuguesa e ainda teve tempo para elaborar estudos sobre esta recolha, que continua fundamental para a compreensão da tatuagem em Portugal na primeira metade do século XX.

O conjunto pertence atualmente ao Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) e, pelo valor histórico reconhecido, foi recentemente alvo de operações de restauro e exposição pública.

 

 

Fontes

Carlos Branco, "O Mais Profundo é a Pele" – Visita Guiada a Uma Coleção Médica Exposta no Mude, in Boletim Informativo, nº28, Núcleo de História da Medicina da Ordem dos Médicos, 06.2017.

 

Vítor Sérgio Ferreira, A permanência da Tatuagem na Fugacidade do Mundo Contemporâneo, in O mais profundo é a Pele, Coleção de Tatuagens 1910-40, Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, 27.05.2017

Cultura Visual da Medicina em Portugal:

https://cvmp.fcsh.unl.pt/?page_id=3484

 

S. Cardal, O «Corpo-Cons(umo)truído» no século XX em Portugal - A tatuagem como expressão gráfica em três fases distintas, in revista Convergências, Disponível em:

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://repositorio.ipcb.pt/bitstream/10400.11/6378/1/Susana%20Cardal.pdf

Patrícia Reis Moreira Sales e Zeny Duarte de MirandaPerspicácia dos Médicos Portugueses: Extração de Pele tatuada e sua Importância para a Ciência da Informação, in Revista Fontes Documentais. Aracaju. v. 03, Edição Especial: Medinfor Vinte Vinte, p. 693-701, 2020.

 

Imagens

https://cvmp.fcsh.unl.pt/?page_id=3484

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://ordemdosmedicos.pt/files/pdfs/3gcy-Boletim-InformativoNHMOM-No-28_JUNHO.pdf

 

Lido em parte incerta (4)

Estúrdio

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Diz-se de quem goza de pouco juízo, tem hábitos excêntricos, frequentemente dissipadores de fortuna. Diz-se de quem não é avisado, sensato, de quem age por impulso, sem pensar nas consequências. Diz-se de atitudes irrefletidas, tendo em conta apenas o divertimento, a estroinice, a pândega.

O último marquês de Nisa foi um estúrdio conhecido. Homem de grande inteligência, visão empresarial e política, mas de paixões tão avassaladoras quanto fugazes. Desbaratou a sua fortuna na boémia e no jogo.

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Lido por aqui e por ali:

“…um D. Juan aureolado de proezas fantásticas, um grande estúrdio que até morrer foi sempre rapaz…”

In Pinto de Carvalho (Tinop), Lisboa d’Outros Tempos – Figuras e Scenas Antigas, Lisboa, Livraria de António Maria pereira, 1898. p.191.

 

 

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Fontes:

  1. Estouvado; leviano; travesso; estroina.
  2. [Brasil] Esquisito (falando-se de coisas)


"estúrdio", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2024, https://dicionario.priberam.org/est%C3%BArdio.

 

Pessoa que não tem juízo; imprudente; insensato; estouvado

Do latim *esturdīre, «ter o cérebro estonteado», de turdu-, «tordo»

Porto Editora – estúrdio no Dicionário infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora. [consult. 2024-08-28 09:53:09]. Disponível em https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/estúrdio

 

Imagens

Belle Epoque: "A varanda" Noite social, um homem faz sexo à mão com a anfitriã. Pintura por Rene Prinet (1861-1946) 1900 Sol. 1,86x1,56 m Caen, Musee des Beaux Arts

La sale de jeu, Jean Béraud, 1889, Musee Carnavalet (Paris), Wikimedia Commons.

Women of the Belle Époque: Understanding the ‘Beautiful Era’ | University of Oxford

Nos cornos de 1925

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Há um século, os primeiros dias do ano não constituíram grande presságio para o que aí vinha. Entre uma manada de bois selvagens à desfilada pelas ruas de Lisboa, o eclipse do sol, a carestia de vida e a sucessão de governos, o rebentamento de engenhos explosivos e o desaparecimento de Sacadura Cabral no nevoeiro do Mar do Norte, os portugueses tinham pouco com que se alegrar. Sentiam-se ventos de mudança, só ainda não se sabia em que sentido.

 

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Há 100 anos, Portugal encontrava-se numa encruzilhada. Só durante 1925, os portugueses experimentaram cinco governos, entre “canhotos”, “bonzos” e outros executivos tão fugazes que o povo nem teve tempo de lhes inventar alcunha. Foram dois os presidentes, Manuel Teixeira Gomes (na imagem, ao centro), que se demitiu já no final do ano, e Bernardino Machado, que já havia ocupado este cargo, fazendo o favor de levar o fardo até ao estertor final da 1ª República, que se verificaria em maio do ano seguinte, mas ainda ninguém previa. Logo em janeiro, o ano não se apresentava promissor.

Na madrugada de dia 2, a população de Lisboa acordou em sobressalto com uma manada de 500 bois bravos à desfilada por várias artérias, entre Alcântara e o Alto da Cruz do Tabuado, encaminhados por diligentes campinos que, como em dia de tourada, tentavam a todo o custo conter o tropel.

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Terminavam ali, no matadouro da cidade (na imagem), a sua última viagem, iniciada na Argentina, a bordo do Dionisios Stabata.

Já na véspera, a chegada do cargueiro tinha motivado a aglomeração de curiosos, para vislumbrar o gado estrangeiro e as manobras para o descarregar em segurança. Pelo aparato, dir-se-ia que tinha chegado um qualquer dignitário internacional: à zona portuária afluíram o embaixador e o cônsul argentinos, o adido militar espanhol e ainda outras pessoas importantes relacionadas com o negócio e a autarquia lisboeta.

Com esta importação direta, tentava a câmara da capital obviar ao incontrolado aumento do preço da carne.

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A carestia, aliás, era uma das principais preocupações dos portugueses por aqueles dias, com os alimentos e o gás a atingirem preços incomportáveis para os magros salários, quando os havia.

De facto, imperava uma crise de trabalho. Estimava-se que dois mil operários pedissem esmola na cidade, mendigando uma qualquer ocupação que pudesse ajudar a pagar o sustento. Somavam-se às ranchadas de crianças que, da mesma forma, lutavam pela sobrevivência.

Como se não bastasse, a 10 de janeiro de 1925, com os tripulantes dos Fokker portugueses que empreendiam mais uma missão aérea, chegam as trágicas notícias. Depois de ter sido aclamado como um herói e alvo de homenagens em todo o País, devido à épica travessia do Atlântico-Sul, em 1922, Sacadura Cabral desaparecia no nevoeiro, algures sobre o Mar do Norte. Os destroços do seu avião, recuperados quatro dias depois, selaram a morte do destemido aviador, que nunca foi encontrado.

Chorou-se o fenecimento deste bravo português e de tantos que não ficaram para a história, até porque a par dos desastres aéreos, a insegurança era uma realidade nos inícios de 1925.

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No Dia de Reis, um padeiro foi assassinado por sindicalistas; um assalto – que depois se provou fictício e fruto de desavenças entre o prior e a freguesia – levou pratas e outros bens da Igreja de São Vicente; roubaram a ourivesaria Lory (ao Rossio), havia dinheiro falso a circular e os 600 presos que partilhavam as celas infectas do Limoeiro viviam em motim permanente. No dia 16, a noite portuense foi agitada pela explosão de dois engenhos explosivos e, a 24, outra bomba é “plantada” à porta da Câmara Municipal de Lisboa.

As primeiras boas notícias só lá para meados do mês: a fartura de peixe fora tanta, que o seu preço caiu a pique, beneficiando os mais necessitados, que só assim o puderam comprar ou até receber gratuitamente, porque houve armadores que preferiram dar o pescado à caridade do que o vender ao desbarato.

Nos talhos, enfim, viam-se os primeiros sinais da abundância, cheios que estavam com carne das pampas, perspetivando-se novos carregamentos mensais até ao verão, altura em que se esperava haver já carne alentejana gordinha o suficiente para alimentar os grandes centros.

multidao no local onde se colocará o monumento ao

Mas, como não há bela sem senão, incompreensivelmente, o preço da carne aumentou um escudo e o pão também escalaria, com o naufrágio de um navio carregado com trigo.

Do estrangeiro vinham ecos de mudança. Mussolini mandava fechar clubs, restaurantes, “casas de bebidas suspeitas” e organizações subversivas, efetuando buscas domiciliárias e prendendo a eito indivíduos que o seu novo regime classificava como perigosos.

Em Portugal, seguiram-se meses de agonia da ainda jovem República, que havia sido implantada apenas 15 anos antes, mas já dava mostras de não ser para durar, tal o tumulto, a instabilidade e o desgoverno.

Foram duas as revoltas militares de monta registadas nesse ano: o golpe dos generais, a 18 de abril, e a revolta de Mendes Cabeçadas (19 de julho). Ensaios para o que  iria concretizar-se em 1926 e mudaria a face política do País para as décadas seguintes.

Sintomaticamente, o filme Couraçado Poutenkin, uma peça de propaganda comunista considerado obra marcante também do ponto de vista da história do cinema, que estrearia no Teatro Bolshoi de Moscovo a 21 de dezembro de 1925, só seria visto entre nós a 2 de maio de 1974 (!) no Cinema Império, precisamente quando o nosso poderio “universal” se desmoronava, mas readquiríamos a liberdade de expressão.

 

À margem

No início de 1925, os faits divers construíam-se à volta dos desafios que as marcas de automóveis lançavam umas às outras, discutindo que modelos eram mais rápidos, eficientes e resistentes. O futebol já reclamava atenção, com os primeiros jogos da segunda volta do Campeonato de Lisboa, que provocaram o corte de relações entre o Sporting Clube de Portugal e o Casa Pia.

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Falava-se também do início da construção do Metro de Lisboa, que seria a primeira rede do país, mas então não passava de uma curiosidade, porque só avançaria 30 anos depois. Não admira, pois a capital sonhava com caminhos subterrâneos, quando, à superfície, as ruas continuavam em terra batida e só então começaram a ser condignamente pavimentadas (na imagem, o Rossio, após a intervenção desse ano).

Mas, nem tudo foi mau em 1925, apesar dos maus prenúncios que alguns viram no eclipse do sol, que ocorreu  a 24 de janeiro.

Comemorou-se o 4º centenário de Vasco da Gama, inaugurou-se a carreira regular de navegação para a América do Norte, a Brazileira do Chiado abriu as suas portas (paredes) aos pintores modernistas, provocando uma verdadeira revolução artística e, coincidência ou não, enquanto a opereta Benamôr ocupava o palco do S. Luíz, é fundada a companhia de cosmética com o mesmo nome, ainda hoje uma referência do sector. Nem tudo estava perdido.

No parlamento, talvez para que se ouvissem ainda melhor as acusações, críticas e insultos que por ali abundavam – sinal do progresso – foram instalados dois novíssimos microfones.

Mas isso é outra história...

 

Fontes

Diário de Lisboa

Cc | Diário de Lisboa | 1921-1990

01.01.1925 – 30.01.1925

 

https://www.infopedia.pt/artigos/$o-couracado-potemkin

https://www.metrolisboa.pt/institucional/conhecer/historia-do-metro/

Benamôr1925 | Natural Cosmetics – Benamôr 1925

A revolução no Chiado que foram os quadros da Brasileira

 

Imagens

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Joshua Benoliel, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000782, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000857, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000864, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/000656

 

Alberto Carlos Lima, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000927

Eduardo Portugal, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/000281, PT/AMLSB/POR/000416

 

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001461