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Normalmente os falsários especializam-se. Há os moedeiros, também conhecidos como “percaleiros”; os que forjam cheques e outros documentos, na gíria tratados como “laparôtos”, e os viciadores de cautelas de lotaria, apelidados de “gatunos da londrina”. Poucos são os que têm a arte e o engenho de fazer o pleno das falsificações e ainda outras proezas dignas de nota. Alfredo Alves Mendes é um raro caso digno dessa seleta galeria, que também teve a honra de ficar para a história como autor dos primeiros selos falsos produzidos no nosso País, até hoje batizados com o seu nome “profissional”. Uma verdadeira vedeta, que ficou conhecida como Pera de Satanás.
O epiteto “Pera de Satanás” advém da barbicha que manteve até morrer, mas a tal batismo não terá sido alheio um muito popular espetáculo com esse título, onde uma das personagens pratica atos maravilhosos e sobrenaturais com o pequeno tufo de pelos que possui no queixo. Não consta que Alfredo Alves Mendes tivesse dotes mágicos, mas a sua carreira mostra que não só era portador de inegáveis qualidades artísticas, como era mestre em fugas e evasões, quase tão bom como um célebre Houdini que por aqueles anos nascia em Budapeste.
O nosso hábil Pera de Satanás era natural Porto e foi logo na sua cidade-berço que fez a suas primeiras proezas. Ainda não tinha descoberto a sua grande vocação e, por isso, foi com furtos que iniciou tão ilustre percurso. Rumou depois à capital do País, onde foi detido por assaltar a Fábrica de Lanifícios de Oeiras. Roubara barretes que pretendia revender, e, certamente, seriam objeto de predileção, já que ostenta um na sua fotografia “oficial”.
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Face aos desaires mencionados, decide mudar de rumo. Não sabemos como sentiu o apelo pelo mui afamado “ofício” da falsificação, mas dedicou-se a copiar na perfeição cautelas das lotarias de Lisboa e Madrid. É preso na Azambuja, mas consegue fugir. Recapturado, lá cumpre um ano “dentro”.
Novamente “ao fresco”, descobre as alegrias de cunhar moeda (na imagem a oficina de amoedação da Casa da Moeda). Uma verdadeira maravilha, da qual depois dará aulas a alguns pupilos que também ganharam notoriedade, como o Caramelo
Não obstante o primor, é detido e condenado a 5 anos de degredo. Enquanto aguarda resposta ao recurso interposto, escapa-se da Cadeia do Limoeiro, no último dia de 1869. É, pois, a monte que entra gloriosamente em 1870 e assim consegue manter-se durante algum tempo, até que é caçado em Viseu. Como não há duas sem três, na viagem para Lisboa quase consegue escapulir-se, em Coimbra. Acaba condenado a cinco anos de trabalho público, desconhecendo-se em que funções. É até pena que, como mais à frente um jornalista chega a sugerir, os seus atributos não tenham sido usados a favor da comunidade, com a sua contratação para a Casa da Moeda (na imagem).
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A esta junta nova pena de degredo, mas em 1881 já está de volta à metrópole.
Não consegue resistir à sua verdadeira inclinação e é de novo implicado num caso de moeda falsa. Por pouco não consegue enganar as autoridades, pois, como habitualmente, em sua posse nada é encontrado e da sua boca não se ouvem confissões, antes elaboradas teorias e desculpas.
Só a sagacidade da polícia consegue deslindar o mistério, descobrindo um “tesouro” em forma de moedas de 500 réis, cunhadas em chumbo escondidas no forro do teto de sua casa.
Novamente preso, é mesmo na Cadeia do Limoeiro que monta uma oficina de falsificação. Uma muito organizada associação com o colega “Mineiro”, que produzia moedas de cinco tostões - as de maior tiragem, sobretudo para África- vendidas em rolos de 100 réis aos degredados, que por elas pagavam um quinto desse valor.
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Descoberto este enredo, não se pode dizer que Alfredo Alves Mendes não fosse persistente, porque, meses depois, com o mesmo "amigo", falsifica uma carta e uma letra de crédito, destinada a ser descontada no Banco Comercial. Fica preso até 1886 e é logo depois que começa a urdir a sua obra-prima (na imagem, exemplo de cautela de 1882).
Aproveita o facto de se terem deixado de produzir selos em relevo, optando-se por uma versão impressa, mais económica; faz uso de um valioso conhecimento com um jovem funcionário da Casa da Moeda, Augusto César Machado que, muito “trabalhado” pelo Pera de Satanás, lhe fornece as verdadeiras matrizes das estampas de 25 e 500 réis, para além de papel e tintas legítimas.
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O resultado, claro está, ficou um primor (na imagem). Começam timidamente a escoar os selos entre os comerciantes nos arredores de Lisboa. O compincha “Abade”, nascido Caetano Simões, com ar de provinciano, é o ideal para fazer a transação, inventando histórias simples mas plausíveis para possuir tantos selos e tão pouco correio. Os interpelados, vendo uma oportunidade de fazer dinheiro facilmente, adquirem abaixo do preço facial.
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Com o aumento das quantidades, dão nas vistas e o chefe Jacob, um velho conhecido, é incumbido de deslindar a marosca. Percebe que só um verdadeiro perito poderia produzir tão perfeito trabalho e ele conhecia apenas uma pessoa com tais predicados. Estava certo. Encontrou a serralharia que produziu uma peça para a máquina de impressão e, dedução atrás de dedução, lá chegou aos cunhos desaparecidos da Casa da Moeda e a Augusto César Machado. Deste, foi ao encontro do Abade, na posse do qual estavam os selos.
Assim, chegou ao mentor do plano, o Pera de Satanás que, embora tenha negado sempre, acabaria condenado e novamente preso, aos 46 anos (na imagem, retratado por Rafael Bordallo Pinheiro, nessa época).
Esta última pena não foi simpática para o ardiloso falsário. Deu-se mal com os ares da Penitenciária de Lisboa. Quando é solto, após três anos, em 1890, já está muito debilitado. A sua proveitosa carreira artística acabaria no Hospital de São José, onde encontra a morte.
O nome Pera de Satanás, no entanto, perduraria. Certamente Alfredo Alves Mendes ficaria orgulhoso ao saber que os seus selos com a efígie do rei D. Luís são hoje muito disputados e vendidos a colecionadores por montantes muito superiores aos verdadeiros.
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À margem
O falsificador Pera de Satanás foi uma verdadeira celebridade, com lugar na galeria de criminosos célebres, retrato pela mão de Rafael Bordalo Pinheiro, referência n’As Farpas, de Ramalho Ortigão, tema de inúmeras referências em jornais da época, livros de filatelia e criminologia.
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Curioso é que, na mesma época em que Alfredo Alves Mendes vivia a sua existência multifacetada, uma outra Pera de Satanás tivesse alcançado ainda maior êxito. Trata-se de um espetáculo musical da autoria de Eduardo Garrido (na imagem), com 3 atos e 27 quadros. Desde 1865, passou pelo Teatro das Variedades Dramáticas, Teatro Avenida e Circo Price, em Lisboa. Esteve em cena meses a fio, com casa cheia, atravessou o oceano e fez igualmente grade sucesso no Brasil, até aos inícios do século XX. Entre as personagens contam-se os reis Caramba e Zambumba, o príncipe Cochicho, Vasco e Castanheta.
O título advém do facto de o diabo ser frequentemente representado como um bode com características humanizadas e, como é habitual nesses animais, com uma barba em torno do queixo. Aqui, a pera do protagonista é capaz dos mais fabulosos prodígios, daí se tratar de uma “mágica”.
Eduardo Garrido (1842-1912), autor especialmente prolífico, com muitas operetas e comédias no seu currículo, também fez numerosas traduções, mas chegou a ser acusado de se apropriar de algumas obras alheias, que adaptava de tal forma que se tornavam suas...no fundo, uma espécie de falsificação artística, que talvez agradasse a Alfredo Alves Mendes.
Mas isso é outra história...
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Diário Illustrado
Textos de Gervásio Lobato
13.10. 1876, 11.09.1884, 23.03.1887, 12.06.1896,
O Occidente
11.07.1883, 21.09.1883
A Resistência
10.02.1898
O Século Ilustrado
02.08.1969
Hemeroteca Municipal do Montijo
https://www.mun-montijo.pt/viver/cultura/bibliotecas/hemeroteca
A Província
17.11.1955, 08.12.1955,
Diário do Governo
https://digigov.cepese.pt/pt/homepage
30.12.1865, 11-05-1867, 02.05.1970, 18.01.1899, 24.04.1899, 09.07.1906.
Arquivo Distrital do Porto
https://pesquisa.adporto.arquivos.pt/
A Pera de Satanás: Mágica em 3 Actos e 18 Quadros, PT/ADPRT/COL/CDAC/005/001/00063
João Moreira Baptista, Falsificações Postais e Filatélicas: Selos “Pera de satanás” tipo “corôa e tipo “ceres”, Grupo de amigos do Museu dos CTT, 1995.
Catarina Pinto, J. Sérgio Seixas de Melo, A Origem da Cor dos Selos Portugueses (1857-1909), in Revisitando abordagens, Inovando Saberes, Departamento de Química da Universidade de Coimbra, 2020.
Portugal, Fred. J. Melville, London, Melville Stamp Books, 1911.
016671553.pdf
António Augusto Mendes Corrêa, Os Criminosos Portugueses, Porto, Imprensa Portuguesa, 1913.
150039_ESPOLIO_ZOOLOGIA_C.pdf
José leite de Vasconcelos, Signum Salomonis, A Figa – A Barba em Portugal, Estudos de Etnografia Comparada
Signum Salomonis - A Figa - A Barba em Portugal - Capítulo III formas e cortes da barba - Etnográfica Press
Signum Salomonis - A Figa - A Barba em Portugal - Capítulo VI a barba no léxico e na literatura - Etnográfica Press
Eduardo Garrido (dramaturgo) – Wikipédia, a enciclopédia livre
Pera de Satanás – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
A Pêra de Satanás: Mágica em 3 Actos e 17 Quadros - FUNARTE
Histórias da História de 26 abr 2019 - RTP Play
Ramalho Ortigão, As Farpas, volume 7
Ramalho Ortigão - As Farpas, V.7 by Carlos Duarte - Issuu
Imagens
Pera de Satanás – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
História da Casa da Moeda - Casa da Moeda
Restos de Colecção: Lotaria em Portugal (1)
Pontos nos II, 31.03.1887
https://pt.wikipedia.org/wiki/Eduardo_Garrido_(dramaturgo)