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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (122): a torre vaidosa e a promessa do comboio

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A Torre de Belém ergue-se imponente há séculos, forte e bela, tão aparentemente delicada na sua ornamentação quase exibicionista, que ninguém diria ter sido construída como elemento defensivo. Mas, esta fotografia de 1862 mostra algo curioso, a promessa de um comboio que demorou mais de três décadas a concretizar-se, contrastando com o antigo baluarte, erguido em apenas cinco anos.

No canto inferior esquerdo da imagem vemos pilhas de toros, algumas já derrubadas, envolvidas pela vegetação que cresce em volta. São vestígios do grande projeto que pretendia ligar Lisboa a Sintra por comboio e que, tendo sido iniciado em 1854, não chegou a bom porto. A linha ferroviária que hoje conhecemos, aliás, sofreu diversas vicissitudes e reformulações, atrasos e cancelamentos, só começando a funcionar em 1889, com a inauguração do primeiro troço, entre Pedrouços e Cascais. Em dezembro do ano seguinte fazia- se a ligação até Alcântara-Mar que, em 1896, passaria a linha dupla.

A tudo isto assistiu impávida e serena a Torre de Belém, construída entre 1514 e 1519, mas não sem demoras, visto que já desde o reinado de D. João II estava previsto um fortim à entrada da barra, elemento da defesa tripartida que se pretendia com as fortificações de Cascais e de S. João da Caparica.

Como estrutura defensiva – que depois também serviu de cadeia - poderia ser apenas robusta e funcional, mas optou-se por seguir a mesma linha de magnificência e ostentação patente no contemporâneo Mosteiro dos Jerónimos, muito ao gosto de D. Manuel I, cujos símbolos se repetem nos dois edifícios.

Tanto quanto para “guardar” o rio, sentinela atenta de quem queria entrar em Lisboa, a Torre, dedicada a São Vicente, parece ter sido edificada para ser vista e admirada, independentemente de ser observada por quem passa de barco ou por terra. A ampla varanda virada a Sul tinha ainda a função de receber os altos dignitários que ali se deslocavam para assistir à partida das armadas portuguesas ou ao seu regresso, pejadas com bens exóticos trazidos de paragens distantes.

 

 

 

Fontes

Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, Revista Pittoresca e Descriptiva de Portugal com Vistas Photographicas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1862.

https://www.museusemonumentos.pt/pt/museus-e-monumentos/torre-de-belem

https://www.alagamares.com/breve-historia-da-linha-de-sintra/

https://pt.wikipedia.org/wiki/Esta%C3%A7%C3%A3o_Ferrovi%C3%A1ria_de_Bel%C3%A9m

https://www.patrimoniocultural.gov.pt/pat_mun/torre-de-belem/

 

Imagem

Joaquim Possidónio Narcizo da Silva, Revista Pittoresca e Descriptiva de Portugal com Vistas Photographicas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1862.

Quando Rama V se aborreceu por cá  

 

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Portugal foi a última paragem no vasto itinerário pelas monarquias europeias que o rei do Sião empreendeu, corria 1897. Com um périplo tão longo, chegou a Lisboa compreensivelmente cansado. Faltou-lhe paciência para o pesado cerimonial e apetite para os complexos menus que o esperavam. Furtou-se a encontros, visitas e banquetes, sendo protagonista de várias quebras de protocolo. Até a abalada foi atribulada, com o descarrilamento do comboio real. Um verdadeiro pesadelo para Chulalongkorm, cujo exotismo foi esmiuçados pelos jornais, especialmente intrigados com o seu harém repleto de belas mulheres.

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Semanas antes de o monarca do Sião pisar solo nacional, já os jornais davam conta da sua viagem e avançavam informações sobre o que se preparava para o receber. Era a primeira visita de Estado de um monarca daquelas paragens, preocupado em modernizar o seu país e apaziguar as potências que encurralavam o seu território e lhe ameaçavam a independência.

Apesar do exotismo, Chulalongkorm (Rama V) era mais permeável ao ocidente que os seus antecessores e estreou o hábito de enviar os príncipes estudar em universidades europeias. O rei siamês, de resto, falava um inglês impecável e foi nessa língua que o entenderam… mas pouco, porque o soberano da atual Tailândia provou ser de parcas palavras.

Os jornalistas desdobraram-se em textos onde não faltava a presença histórica – heroica, claro – dos portugueses no reino do Sião e considerações sobre o estado de civilização, as características físicas e os estranhos hábitos daquele povo. Não escapou a estas análises preconceituosas a profusão de esposas deste polígamo, possuidor de “centenas de mulheres”, guardadas por um batalhão igualmente feminino.

Como se de revistas cor-de-rosa se tratassem, multiplicaram-se em fastidiosas notícias onde se enumeravam todos os grandes do reino presentes nas cerimónias e encontros, as riquíssimas indumentárias de homens e mulheres – dos pés, à cabeça, passando por insígnias e joias – condecorações, presentes trocados e as muito elaboradas ementas, todas em francês, como ditava a moda da época.

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Mas, a sofisticação cosmopolita que Portugal quis mostrar não agradou a Chulalongkorm: na refeição servida a bordo do comboio deixou os convidados a falar sozinhos, recolhendo aos aposentos, o que se repetiu numa das refeições servidas no Hotel Bragança. No banquete do palácio da Ajuda, para grande escândalo da corte, levantou-se antes das rainhas, não deixando servir todo o menu e, finalmente, recusou almoçar em Sintra.

Fico intrigada se o fastio terá sido motivado pelas inúmeras iguarias internacionais ou pelas Fèves e Cabidella à la Portugaise (leia-se favas e cabidela à portuguesa), os únicos pratos reconhecidamente nacionais com privilégio de ir à mesa real. Não terá sido, certamente, por não querer provar um curioso Four de Belém, sobremesa que se adivinha poder ser pastel de Belém, uma vez que estes começaram a ser produzidos em 1837.

A indisposição poderá, no entanto, ter sido consequência do hábito português de não descobrir a cabeça à sua passagem nas ruas, o que caiu mal ao rei do Sião, habituado, quiçá, a um povo mais educado ou submisso.

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A diplomacia portuguesa, por outro lado, não se poupou a esforços e gastos para dignificar a visita. Engalanaram-se as ruas e praças, transformou-se o Hotel Bragança numa espécie de paço real siamês, mostrou-se um pouco do nosso património, nomeadamente o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém; colocando-se os melhores landaus e caleches, puxados pelas mais aptas parelhas de animais, ao serviço da comitiva.

Em Cascais, as festas tiveram ainda mais brilho, com 15 mil luminárias – entre tigelinhas, lanternas e balões - espalhadas pelas encostas e flutuantes, para além de fogo de artifício e 400 barricas carregadas com alcatrão em chamas – o efeito, calculo, seria tão feérico, quanto fedorento.

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Chulalongkorm terá manifestado agrado por este espetáculo na bela baía, mas, no geral, mostrou-se enfadado. Acordou sempre tarde – cerca do meio-dia – e mais tardiamente ainda saiu dos aposentos. Declarou-se fatigado e, por isso, declinou assistir aos espetáculos marcados para o Coliseu dos Recreios e para o Teatro D. Amélia.

Como que a combinar com o ânimo real, chovia copiosamente nessa noite de 23 de outubro, quando, finalmente, saiu com o seu séquito rumo à estação do Rossio, onde um grupo grande de representantes do Estado Português - nomeadamente vários ministros, El Rei D. Carlos e o infante D. Afonso - se foi despedir,

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Este, no entanto, não seria o fim da estadia do rei do Sião no nosso País. A escassos quilómetros de Lisboa, entre as estações de Sacavém e Povoa de Santa Iria, o comboio descarrilou. A linha encontrava-se alagada e coberta com detritos, a locomotiva foi atingida por pedras e vegetação de grande porte, o que a fez sair da linha, embora o resto da composição tenha permanecido no trilho.

Foi grande o aparato, embora sem grande perigo ou susto para as reais pessoas, que se encontravam na carruagem restaurante e foram informadas do ocorrido pelo representante da Wagon-Lits. Mas foi uma maçada – mais uma – pois os ilustres passageiros tiveram de passar a noite na estação de Sacavém, para onde as carruagens haviam sido rebocadas. O resto da viagem até Espanha correu normalmente, embora se registassem inundações e outras ocorrências de menor monta.

À margem

Tal como desperdiçou, do ponto de vista comercial, o facto de ter sido o primeiro país a fixar consulado em Banguecoque (1820), Portugal também não tirou partido desta visita do rei do Sião para a assinatura de qualquer novo acordo. Aquele era, nesta época, o único reino não colónia no Sudeste Asiático, mas encontrava-se espartilhado pelos denominados “tratados desiguais”, impostos por várias nações europeias, que, como o próprio nome indicia, não encaravam os dois povos signatários como equivalentes, antes, tinham grandes desvantagens para o Sião e benefícios para os outros Países. Tais documentos começaram a ser revistos e renegociados em 1919 e permitiram ao Sião afirmar a sua autonomia.

Já não seriam D. Carlos e Chulalongkorm (Rama V) a protagonizar essa nova ordem. O nosso rei, como sabemos, foi assassinado em 1908 e a própria monarquia portuguesa seria derrubada em 1910, exatamente 18 dias antes de o rei siamês que primeiro nos visitou exalar o seu último suspiro.

Portugal voltaria a receber um soberano siamês apenas em 1960, já os regimes políticos dos dois países tinham dado uma enorme reviravolta – ou várias - e o Sião tinha até mudado de nome, para Tailândia (país livre, na língua local).

Foi Bhumibol Adulyadev (Rama IX), da mesma dinastia e igualmente intitulado “O Grande”, quem promoveria essa visita, ocorrida durante o Estado Novo. Seria interessante saber se durante esta estadia e atendendo ao regime musculado que Portugal experienciava, o soberano tailandês também recebeu numerosas cartas (mais de 300, deram entrada no Hotel Bragança, em 1897) pedindo esmola, em português e inglês.

Mas isso é outra história...

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Já aqui falei de outras visitas importantes ao nosso país:

Todas as peripécias da visita de Eduardo VII a Portugal - O sal da história

Os japoneses deixaram Lisboa com os olhos em bico - O sal da história

Instantâneos (94): uma visita de sultão - O sal da história

A deslumbrante visita do Rei dos Reis a Portugal - O sal da história

 

Fontes

Biblioteca Nacional de Portugal

www.purl.pt

Diário Illustrado

17.10.1897, 17.10.1897, 19.10.1897, 20.10.1897, 21.10.1897, 22.10.1897, 23.10.1897, 24.10.1897, 25.10.1897, 26.10.1897.

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital

O Occidente

20.09.1897, 30.10.1897 (texto de João da Câmara)

 

Susana Guerra, O arquivo histórico contra as apropriações simbólicas: As relações entre Portugal e a Tailândia no século XX, in Revista Porto nº3, Volume 2, 2013. pp58-84. Disponível aqui: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fperiodicos.ufrn.br%2Fporto%2Farticle%2Fdownload%2F4445%2F3632%2F0&psig=AOvVaw1_cLXPlfXjBxUP1F8WeOOd&ust=1742395792986000&source=images&cd=vfe&opi=89978449&ved=0CAYQrpoMahcKEwjg2bbZ8JOMAxUAAAAAHQAAAAAQBA

https://aquimaria.com/aboutth-chulalongkorn.html

https://lisbon.thaiembassy.org/en/content/125-th-anniversary-of-rama-the-fifth-royal-visit-t?cate=60edba33c970b619291dba12

Imagens

Arquivo Municipal de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa - Arquivo Municipal

José Chaves Cruz, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000374, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000379, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000377.

Estas imagens estão arquivadas com data de fevereiro de 1907, mas visto que não existe registo de qualquer visita de um rei siamês entre 1897 e 1960, presume-se que essa datação esteja incorreta e que as mesmas retratem a visita de 1897, o que é confirmado na página da embaixada da Tailândia.

 

O Occidente

20.09.1897, 30.10.1897

Cascais, 1850-1910 | Cascais Cultura

Estação do Rossio - VIAJANDO PELO MUNDO

Pela imprensa (31): vinho com cheirinho a “glorioso”

 

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Um cálice desta maravilha correspondia à ingestão de um bom bife! Várias doses davam força e energia aos debilitados, porque se tratava de um poderoso tónico. Mas, isso é dizer pouco desta fantástica invenção de Pedro Augusto Franco, Conde do Restelo, então produtor exclusivo do vinho nutritivo de carne, que muito dinheiro lhe terá dado a ganhar.

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Durante pelo menos meio século, este preparado da Franco & Filhos, de Belém, foi amplamente anunciado na imprensa e consumido pelos mais frágeis. Para além de robustez, proporcionava-lhes, muito provavelmente, alguma alegria, quiçá uma inexplicável euforia, especialmente a quem não estivesse habituado a consumir bebidas alcoólicas.

É que a posologia era, por assim dizer, bastante livre. Aconselhava-se três vezes ao dia, no ato da comida ou em caldo, para quem não se conseguisse alimentar convenientemente, uma colher para as crianças ou pessoas muito débeis e duas a três para os adultos. Mas também se podia ingerir “com quaisquer bolachinhas”, transformando-se num “excelente luch” para os convalescentes e fracos.

Caía bem em todos os momentoa, portanto...

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Prevenia a rejeição de alimentos e evitava as digestões tardias e laboriosas, mas também se receitava a quem padecesse de problemas de estômago (dispepsia, cardialgia, gastrodinia, gastralgia), anemia ou inação dos órgãos, achitismo (?), afeções escrofulosas e, em geral, para quem estivesse a recuperar de uma doença, qualquer que esta fosse, pois desenvolvia o apetite, enriquecia o sangue e fortalecia os músculos. Sinceramente, não me ocorre o que mais desejar de um tónico…

Mas, afinal, o que seria este “vinho nutritivo de carne”?

À falta da receita, podemos apenas especular com base no conhecimento sobre outros produtos semelhantes, uma espécie de vinhos aditivados, acrescentados, valorizados, neste caso, com a introdução de ossos, toucinho ou presunto nas cubas, em contacto com o vinho, supostamente tornando-o mais rico em proteína e, por isso, com características revigorantes, capazes de dar vida aos mais enfraquecidos. Neste mesmo sentido, aliás, várias marcas de vinho do Porto tinham gamas com o mesmo propósito, casos do Invalid Port, da Kopke ou do Recuperator Port, da Casa Ferreira.

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O vinho nutritivo de Pedro Augusto Franco – político dinâmico, para além de afamado farmacêutico – alardeava possuir “privilégio Real Exclusivo por decreto de 9 de Agosto de 1883”, autorização do governo, aprovação da Junta Consultiva de Saúde Pública de Portugal e da Inspectoria Geral de Higiene da Corte do Rio de Janeiro, sendo igualmente comercializado do outro lado do oceano. Para além disso, ostentava orgulhosamente diversos prémios em exposições internacionais. A saber: Grand Prix em Londres e medalhas de ouro no Rio de Janeiro, Antuerpia, Belém (do Pará), Lisboa, Paris e novamente Londres.

Resta esclarecer a ligação entre este aparentemente infalível “medicamento”  e o “glorioso” Sport Lisboa e Benfica: é que foi na farmácia Franco & Filhos, onde também se criaram outras perolas, como o xarope peitoral “James”, e a farinha peitoral ferruginosa, que se realizou a primeira reunião dos fundadores desse grande clube, em 28 de fevereiro de 1904.

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

A Capital 31 dez 1924

 

Biblioteca Digital de Portugal

www.purl.pt

Jornal do Porto, 16.10.1888

 

Hemeroteca Digital do Brasil

https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/

Diário Portuguez

24.04.1885, 16.06.1885

 

A. Gonçalves Guimarães, A Arte de Artificial os Vinhos, in Douro – Estudos & Documentos, vol VII, (14), 2002 (4º), pp197-2013

https://gluco-manhente.blogspot.com/2008/04/vinho-nutritivo-de-carne-um-bom-bife.html

https://www.publico.pt/2019/02/18/local/noticia/115-anos-benfica-lugares-memoria-clube-nomada-moveu-cidade-1862096

https://dre.tretas.org/dre/89528/decreto-lei-46642-de-13-de-novembro

https://ruascomhistoria.wordpress.com/2018/06/29/recordamos-hoje-pedro-augusto-franco-farmaceutico-que-ficou-famoso-pelos-seu-remedios-vinho-nutritivo-de-carne-xarope-peitoral-james-e-farinha-peitoral-ferruginosa/

https://www.museudafarmacia.pt/detalhe.aspx?area=storymap&f=124&bid=83

https://www.museudafarmacia.pt/collection/ficha.aspx?lang=PO&a=1&pa=1&id=4480

https://www.arquivofarmacias.pt/viewer?id=4582&FileID=12829&recordType=Description

https://www.museudafarmacia.pt/collection/ficha.aspx?lang=PO&a=0&pa=&id=4480&pos=1

https://restosdecoleccao.blogspot.com/2024/11/farmacia-franco.html

https://gluco-manhente.blogspot.com/2008/04/vinho-nutritivo-de-carne-um-bom-bife.htm

 

 

 

Escritora, amante real e…freira

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Feliciana Maria de Milão esteve no centro de uma feroz luta política concertada para depor D. Afonso VI com base na sua impotência. Talvez por isso – e pelo escândalo associado – foi silenciada a relação entre o rei e esta misteriosa religiosa do convento de Odivelas, que lhe poderá ter dado uma filha. De mão em mão, no entanto, circularam os seus escritos, poesia, cartas trocadas com os grandes do reino, prova da sua grande erudição, algumas traduzidas e publicadas. De boca em boca, viajaram, durante séculos, os seus ditos e trocadilhos, misto de provocação e anedota, mas sempre reflexo da arguta inteligência, rapidez de raciocínio e ousadia.

Não se lhe conhece a origem, porque Feliciana Maria de Milão ocultou os nomes dos pais no registo que preencheu quando deu entrada no mosteiro de S. Dinis e S. Bernardo de Odivelas, aos 30 anos, corria 1659. Mas, várias pistas ligam esta intrigante freira aos condes de Vale de Reis e, através destes, à alta nobreza de Aragão, o que a tornaria especialmente perigosa numa época em que Portugal ainda tentava fortalecer a recentemente recuperada independência, após o domínio filipino, entre 1580 e 1640.

Esta ascendência distinta poderia explicar ter tido dote para ingressar na vida conventual, mas também justifica a sua vasta e diversificada cultura, mestria de exposição e os óbvios hábitos de leitura que a sua produção literária reflete.

A vontade de escrever e publicar poderá mesmo ter sido decisiva na opção pela clausura. É que a sociedade do século XVII não tinha lugar para mulheres solteiras e independentes, muito menos autoras. Autónomas de pais e maridos, facilmente se tornariam suspeitas de ser meretrizes ou bruxas.

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No convento, estaria protegida, mas não se furtou de dar nas vistas.

Foram, aliás, muitos os motivos para que se falasse de Feliciana Maria de Milão: entre a pega de touros que El Rei D. Afonso VI (na imagem) protagonizou em sua homenagem, em pleno adro, e na sequência da qual ficou ferido, tendo necessidade de ser sangrado, e as cartas onde se fala da relação da mesma real pessoa com Feliciana, então trocada por outra monja.

Das missivas políticas e amorosas, a outros escritos enigmáticos; da correspondência com Catarina de Bragança, futura rainha de Inglaterra e irmã dos reis D. Afonso VI e D. Pedro II e com o Duque de Cadaval, um dos maiores do reino; à participação numa obra coletiva da qual também fez parte uma das maiores escritoras hispânicas daquele tempo, a mexicana soror Juana Inés de la Cruz…

Somam-se a tudo isto as inúmeras frases irónicas e chistosas, provocatórias até, que lhe são atribuídas e foram repetidas milhares de vezes até chegarem aos dias de hoje, transformando-se, popularmente, no seu legado mais conhecido. Nesse ditos, goza com atributos físicos e de carácter dos seus interlocutores ou faz trocadilhos com os seus apelidos, demonstrando grande capacidade de observação, velocidade de pensamento e sentido de humor, embora se possa dizer que também dá nota de falta de humildade.

Apesar de nunca ter adotado um nome religioso, assinando sempre Feliciana Maria de Milão, mais tarde assumiu importantes funções de prioresa e abadessa, foi uma gestora de mérito e fez publicar o ofício da ordem.

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No entanto, o seu comportamento não deixa de ser suscetível de censura – na medida em que falamos de uma freira – pois, mesmo sem se conhecer o verdadeiro teor, são-lhe conhecidas relações não só com D. Afonso VI, como pelo menos com mais dois homens: Pedro de Quadros e F. Aranha.

Talvez por isso o seu epitáfio contraste com outros que enaltecem as qualidades morais das monjas que jazem nas sepulturas da Sala do Capítulo, em Odivelas, onde morreu, em 1706. Terá pretendido que apenas se escrevesse “A pecadora”, mas alguém mandou gravar as seguintes palavras:

Pedra, que um tesouro guardas

Na Singular Feliciana

Dize ao mundo que se engana

Que quem tudo foi é nada

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À margem

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Dona Feliciana de Milão era incómoda para os partidários de D. Afonso VI, testemunhando os hábitos freiráticos, contrários à moral e à própria lei e, portanto, indignos de um rei que se devia mostrar forte e acima de qualquer contestação, num reinado que é apenas o segundo após a recuperação da independência de Portugal, em 1640. Era, igualmente, desfavorável às pretensões de D. Pedro II, que destronou o irmão com alegações de não consumação do casamento e, portanto, incapacidade para gerar descendência, num processo em que foram ouvidas várias prostitutas, mas não as freiras alegadamente amantes do rei, Feliciana, Ana Moura e também Maria das Saudades.

A 20 de março de 1686 dá entrada no mesmo Convento de S. Dinis e S. Bernardo de Odivelas uma Teresa de Milão, com 18 anos, cuja idade colocaria o seu nascimento no período de cerca de cinco anos que se estima tenha durado o relacionamento de D. Feliciana com o rei.

Aponta o nome dos pais como sendo Luís Pina Caldas e D. Ana Maria Milas de Macedo, mas vários autores dão esta jovem noviça como filha de D. Feliciana com D. Afonso VI, a quem ainda apontam outra descendente, fruto de uma relação com Catarina Arrais de Mendonça, que também daria entrada num convento.

Neste jogo de pistas e manobras de diversão, à distância de mais de três séculos, é difícil perceber o que foi verdade e o que era propaganda das fações rivais, os que queriam defender a competência do rei e os que afiançavam a sua impotência. Todo o processo da sua deposição foi, aliás, de muito mau gosto e grande indignidade, embora se possa argumentar que estava em causa o interesse nacional. Estaria?

Mas, disso, falaremos noutra história…

 

 

Fontes

 

Pedro António Freire Santos de Sena-Lino, Estratégias por Correspondência - Uma leitura da obra de Feliciana de Milão, tese de Doutoramento no Ramo de Estudos de Literatura e de Cultura Estudos de Literatura e Cultura de Expressão Portuguesa, Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Departamento de Literaturas Românicas, 2012, disponível em: ulsd064968_td_apendice.pdf

 

Pedro Sena-Lino, El Rei Eclipse, Lisboa, Contraponto Editores, outubro 2024.

 

Fernanda Maria Guedes de Campos , Feliciana Maria de Milão (1629 - 1705): Na Marca de Posse o Lema de Vida, in Revista do Instituto de Ciência da Informação da UFBA v. 16 n. 3 (2022). Disponível aqui: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaici/issue/view/2366

Hemeroteca Digital de Lisboa

A. Palmeirim, in A Illustração Portugueza, 24.05.1886.

A. Palmeirim, in A Illustração Portugueza, 31.05.1886.

 

 

 

Imagens

Nota: as imagens de religiosas são meramente exemplificativas. À exceção da primeira, aludem claremente à Ordem de Cister, à qual pertenceu D. Feliciana.

https://digitalcollections.nypl.org/items/510d47e4-817f-a3d9-e040-e00a18064a99

https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_VI_de_Portugal

https://fineartamerica.com/featured/cisterciana-cistercian-nun---date-mary-evans-picture-library.html

 

https://images.app.goo.gl/CWiSmHfnzZvLgdja7

 

https://images.app.goo.gl/AXtRa1iLqGRgqP738

 

https://www.guiadacidade.pt/pt/poi-mosteiro-de-sao-dinis-e-sao-bernardo-281493