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Portugal foi a última paragem no vasto itinerário pelas monarquias europeias que o rei do Sião empreendeu, corria 1897. Com um périplo tão longo, chegou a Lisboa compreensivelmente cansado. Faltou-lhe paciência para o pesado cerimonial e apetite para os complexos menus que o esperavam. Furtou-se a encontros, visitas e banquetes, sendo protagonista de várias quebras de protocolo. Até a abalada foi atribulada, com o descarrilamento do comboio real. Um verdadeiro pesadelo para Chulalongkorm, cujo exotismo foi esmiuçados pelos jornais, especialmente intrigados com o seu harém repleto de belas mulheres.
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Semanas antes de o monarca do Sião pisar solo nacional, já os jornais davam conta da sua viagem e avançavam informações sobre o que se preparava para o receber. Era a primeira visita de Estado de um monarca daquelas paragens, preocupado em modernizar o seu país e apaziguar as potências que encurralavam o seu território e lhe ameaçavam a independência.
Apesar do exotismo, Chulalongkorm (Rama V) era mais permeável ao ocidente que os seus antecessores e estreou o hábito de enviar os príncipes estudar em universidades europeias. O rei siamês, de resto, falava um inglês impecável e foi nessa língua que o entenderam… mas pouco, porque o soberano da atual Tailândia provou ser de parcas palavras.
Os jornalistas desdobraram-se em textos onde não faltava a presença histórica – heroica, claro – dos portugueses no reino do Sião e considerações sobre o estado de civilização, as características físicas e os estranhos hábitos daquele povo. Não escapou a estas análises preconceituosas a profusão de esposas deste polígamo, possuidor de “centenas de mulheres”, guardadas por um batalhão igualmente feminino.
Como se de revistas cor-de-rosa se tratassem, multiplicaram-se em fastidiosas notícias onde se enumeravam todos os grandes do reino presentes nas cerimónias e encontros, as riquíssimas indumentárias de homens e mulheres – dos pés, à cabeça, passando por insígnias e joias – condecorações, presentes trocados e as muito elaboradas ementas, todas em francês, como ditava a moda da época.
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Mas, a sofisticação cosmopolita que Portugal quis mostrar não agradou a Chulalongkorm: na refeição servida a bordo do comboio deixou os convidados a falar sozinhos, recolhendo aos aposentos, o que se repetiu numa das refeições servidas no Hotel Bragança. No banquete do palácio da Ajuda, para grande escândalo da corte, levantou-se antes das rainhas, não deixando servir todo o menu e, finalmente, recusou almoçar em Sintra.
Fico intrigada se o fastio terá sido motivado pelas inúmeras iguarias internacionais ou pelas Fèves e Cabidella à la Portugaise (leia-se favas e cabidela à portuguesa), os únicos pratos reconhecidamente nacionais com privilégio de ir à mesa real. Não terá sido, certamente, por não querer provar um curioso Four de Belém, sobremesa que se adivinha poder ser pastel de Belém, uma vez que estes começaram a ser produzidos em 1837.
A indisposição poderá, no entanto, ter sido consequência do hábito português de não descobrir a cabeça à sua passagem nas ruas, o que caiu mal ao rei do Sião, habituado, quiçá, a um povo mais educado ou submisso.
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A diplomacia portuguesa, por outro lado, não se poupou a esforços e gastos para dignificar a visita. Engalanaram-se as ruas e praças, transformou-se o Hotel Bragança numa espécie de paço real siamês, mostrou-se um pouco do nosso património, nomeadamente o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém; colocando-se os melhores landaus e caleches, puxados pelas mais aptas parelhas de animais, ao serviço da comitiva.
Em Cascais, as festas tiveram ainda mais brilho, com 15 mil luminárias – entre tigelinhas, lanternas e balões - espalhadas pelas encostas e flutuantes, para além de fogo de artifício e 400 barricas carregadas com alcatrão em chamas – o efeito, calculo, seria tão feérico, quanto fedorento.
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Chulalongkorm terá manifestado agrado por este espetáculo na bela baía, mas, no geral, mostrou-se enfadado. Acordou sempre tarde – cerca do meio-dia – e mais tardiamente ainda saiu dos aposentos. Declarou-se fatigado e, por isso, declinou assistir aos espetáculos marcados para o Coliseu dos Recreios e para o Teatro D. Amélia.
Como que a combinar com o ânimo real, chovia copiosamente nessa noite de 23 de outubro, quando, finalmente, saiu com o seu séquito rumo à estação do Rossio, onde um grupo grande de representantes do Estado Português - nomeadamente vários ministros, El Rei D. Carlos e o infante D. Afonso - se foi despedir,
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Este, no entanto, não seria o fim da estadia do rei do Sião no nosso País. A escassos quilómetros de Lisboa, entre as estações de Sacavém e Povoa de Santa Iria, o comboio descarrilou. A linha encontrava-se alagada e coberta com detritos, a locomotiva foi atingida por pedras e vegetação de grande porte, o que a fez sair da linha, embora o resto da composição tenha permanecido no trilho.
Foi grande o aparato, embora sem grande perigo ou susto para as reais pessoas, que se encontravam na carruagem restaurante e foram informadas do ocorrido pelo representante da Wagon-Lits. Mas foi uma maçada – mais uma – pois os ilustres passageiros tiveram de passar a noite na estação de Sacavém, para onde as carruagens haviam sido rebocadas. O resto da viagem até Espanha correu normalmente, embora se registassem inundações e outras ocorrências de menor monta.
À margem
Tal como desperdiçou, do ponto de vista comercial, o facto de ter sido o primeiro país a fixar consulado em Banguecoque (1820), Portugal também não tirou partido desta visita do rei do Sião para a assinatura de qualquer novo acordo. Aquele era, nesta época, o único reino não colónia no Sudeste Asiático, mas encontrava-se espartilhado pelos denominados “tratados desiguais”, impostos por várias nações europeias, que, como o próprio nome indicia, não encaravam os dois povos signatários como equivalentes, antes, tinham grandes desvantagens para o Sião e benefícios para os outros Países. Tais documentos começaram a ser revistos e renegociados em 1919 e permitiram ao Sião afirmar a sua autonomia.
Já não seriam D. Carlos e Chulalongkorm (Rama V) a protagonizar essa nova ordem. O nosso rei, como sabemos, foi assassinado em 1908 e a própria monarquia portuguesa seria derrubada em 1910, exatamente 18 dias antes de o rei siamês que primeiro nos visitou exalar o seu último suspiro.
Portugal voltaria a receber um soberano siamês apenas em 1960, já os regimes políticos dos dois países tinham dado uma enorme reviravolta – ou várias - e o Sião tinha até mudado de nome, para Tailândia (país livre, na língua local).
Foi Bhumibol Adulyadev (Rama IX), da mesma dinastia e igualmente intitulado “O Grande”, quem promoveria essa visita, ocorrida durante o Estado Novo. Seria interessante saber se durante esta estadia e atendendo ao regime musculado que Portugal experienciava, o soberano tailandês também recebeu numerosas cartas (mais de 300, deram entrada no Hotel Bragança, em 1897) pedindo esmola, em português e inglês.
Mas isso é outra história...
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Já aqui falei de outras visitas importantes ao nosso país:
Todas as peripécias da visita de Eduardo VII a Portugal - O sal da história
Os japoneses deixaram Lisboa com os olhos em bico - O sal da história
Instantâneos (94): uma visita de sultão - O sal da história
A deslumbrante visita do Rei dos Reis a Portugal - O sal da história
Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal
www.purl.pt
Diário Illustrado
17.10.1897, 17.10.1897, 19.10.1897, 20.10.1897, 21.10.1897, 22.10.1897, 23.10.1897, 24.10.1897, 25.10.1897, 26.10.1897.
Hemeroteca Digital de Lisboa
Hemeroteca Digital
O Occidente
20.09.1897, 30.10.1897 (texto de João da Câmara)
Susana Guerra, O arquivo histórico contra as apropriações simbólicas: As relações entre Portugal e a Tailândia no século XX, in Revista Porto nº3, Volume 2, 2013. pp58-84. Disponível aqui: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fperiodicos.ufrn.br%2Fporto%2Farticle%2Fdownload%2F4445%2F3632%2F0&psig=AOvVaw1_cLXPlfXjBxUP1F8WeOOd&ust=1742395792986000&source=images&cd=vfe&opi=89978449&ved=0CAYQrpoMahcKEwjg2bbZ8JOMAxUAAAAAHQAAAAAQBA
https://aquimaria.com/aboutth-chulalongkorn.html
https://lisbon.thaiembassy.org/en/content/125-th-anniversary-of-rama-the-fifth-royal-visit-t?cate=60edba33c970b619291dba12
Imagens
Arquivo Municipal de Lisboa
Arquivo Municipal de Lisboa - Arquivo Municipal
José Chaves Cruz, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000374, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000379, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/CRU/000377.
Estas imagens estão arquivadas com data de fevereiro de 1907, mas visto que não existe registo de qualquer visita de um rei siamês entre 1897 e 1960, presume-se que essa datação esteja incorreta e que as mesmas retratem a visita de 1897, o que é confirmado na página da embaixada da Tailândia.
O Occidente
20.09.1897, 30.10.1897
Cascais, 1850-1910 | Cascais Cultura
Estação do Rossio - VIAJANDO PELO MUNDO