Para tão rica tiara, tão curta a vida
D. Pedro V queria apenas o melhor para homenagear a sua noiva. Para um rei contido, como este filho de D. Maria II, foi algo de extravagante a encomenda de uma riquíssima tiara com quatro mil diamantes. A bela proprietária usou-a com sacrifício e morreu jovem, lançando a joia numa vida atribulada: passou por diversas mãos e foi repartida em inúmeros fragmentos. O que chegou aos nossos dias é um verdadeiro puzzle.
A base para a elaborada decoração com nítida inspiração árabe é um círculo articulado em prata guarnecida a ouro. Podia ser usada aberta, com diadema, ou fechada, em forma de coroa. Nas múltiplas cravações espreitavam pedras de diversos tamanhos, em talhes brilhante e rosa. O belíssimo conjunto foi encomendado em 1858 a Raimundo José Pinto, ourives da Casa Real Portuguesa. Custou 90 mil cruzados (?).
D. Estefânia estreou a peça logo nas cerimónias de comemoração do seu consórcio com o monarca português (na imagem). Na Igreja de S. Domingos, durante a sessão de ratificação do casamento, sabemos que a usou, provavelmente com grande sacrifício, uma vez que houve quem visse pequenas gotas de sangue na fronte da noiva, pois o aro era muito largo para aquela delicada cabeça real e ficava cravado na testa.
Não admira, pois, que em ocasiões posteriores, aquela autêntica coroa de espinhos, pesada e desconfortável, tivesse sido substituída por uma graciosa grinalda de rosas. Não sabemos que estratégia foi utilizada para aligeirar o padecimento, mas a rainha voltaria a envergar o presente, no beija-mão que se realizou em Belém, desta vez, aparentemente sem sofrimento e conjugando com esplendido vestido cor-de-rosa, aplicações e colar também de diamantes.
O reinado de D. Pedro V foi curto. O de D. Estefânia ainda mais: cerca de um ano e um mês após estes festejos, a 17 de julho de 1859, morre de difteria a princesa que viera do norte de Europa para se tornar rainha consorte de Portugal. O inconsolável rei, precocemente viúvo, não resiste à febre tifoide e perece em novembro do negro ano de 1861, em que também desaparecerem os dois príncipes, João e Fernando.
A tiara duraria mais tempo, mas seria rapidamente reconvertida ao gosto da sua próxima proprietária, D. Maria Pia de Saboia, a quem foi oferecida, em 1862, pelo noivo, D. Luís, que sucedeu ao irmão no trono. A nova rainha tê-la-á usado, tanto que é assim representada num busto esculpido em pedra (na imagem). Mas, como as modas mudam e à tendência arabizante na joalharia, seguiu-se outra mais naturalista, depressa tratou de reciclar o rico adereço.
É assim que, cerca de uma década depois de ter recebido a joia, já esta se encontrava segmentada, algumas das decorações eram usadas como broche e a maior parte dos diamantes foi resplandecer noutras criações artísticas, como o diadema que D. Maria Pia usou no casamento do seu filho D. Carlos, obra da Leitão & Irmão (na imagem).
Custou quase dois contos de réis e somou-se às restantes aquisições feitas em 1886, na mesma casa, mas com gemas a estrear. Destacam-se aqui as ofertas à nova princesa recém-chegada, D. Amélia de Orleães (na imagem).
Não muito tempo depois, a tiara nova foi, em conjunto com outras preciosidades, entregue como garantia de empréstimos bancários, reflexo da difícil situação financeira em que o País se encontrava. Permaneceram nos cofres do banco, com ocasionais saídas para comparecer em cerimónias importantes, mantendo as aparências. Todo o espólio seria vendido já após a implantação da República, num badalado leilão realizado entre 24 e 31 de julho de 1912.
A carcaça da tiara original, essa, ficara nos aposentos reais do Palácio Nacional da Ajuda. Mais de um século depois, os destroços, expurgados da rica pedraria, foram reunidos num intrincado quebra-cabeças, belo, mas pálida imagem da joia inicial.
À Margem
São fascinantes as histórias de muitas das joias e outros objetos expostos no Museu do Tesouro Real. Com o grande terramoto de 1755, a ida da corte para o Brasil, as invasões francesas e a Implantação da República, custa a perceber como é que ainda sobreviveram tantos objetos de valor, embora se saiba que o Estado Português também fez um trabalho de recuperar – comprando – peças que se haviam espalhado por todo o mundo, quer porque foram herdadas e levadas em dote por príncipes e princesas que casaram no estrangeiro, porque foram vendidas no já referido leilão, roubadas em períodos mais recentes ou desmanteladas ao longo dos tempos, para atender a gostos ou necessidade.
Ali podemos admirar verdadeiras obras de arte criadas pelos mais hábeis ourives, mas também autênticas maravilhas da natureza, como a segunda maior pepita de ouro conhecida, com cerca de 20 quilos e perto de dois palmos de largura. É o caso igualmente de um diamante em bruto de grande dimensão, tal como a pepita, vindo do Brasil (Minas Gerais). Foi a descoberta de diamantes em quantidades nunca vistas, cerca de dois séculos após a chegada dos portugueses àquele continente, que mudou para sempre a história da joalharia a nível mundial, ameaçando as milenares e enraizadas rotas asiáticas. Foi uma autêntica guerra comercial, que obrigou a arriscadas manobras e transformou os monarcas portugueses nos “senhores dos diamantes” à escala global.
Mas isso é outra história…
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Nota: o título alude a uma conhecida frase, na verdade um verso do soneto de Camões Sete Anos de Pastor:
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por soldada pretendia.
Os dias na esperança de um só dia
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel, lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que por enganos
lhe fora assi negada sua pastora,
como se a não tivera merecida,
Tornando já a servir outros sete anos,
dezia: –Mais servir(i)a, se não fora
p[e]ra tão longo(s) a[m]o[r] tão curta vida.
Fontes
João Júlio Rumsey Teixeira, Uma Tiara com 4.000 diamantes, História e paradeiro da tiara de D. Estefânia, reconvertida por D. Maria Pia e vendida após a Implantação da República – 1858-1912, abril 2020.
https://www.palacioajuda.gov.pt/paginas/6f1331a1-estudos
https://www.revistas.usp.br/revhistoria/article/view/212365
João Júlio Rumsey Teixeira, The Consolidation of the Brazilian Diamond Monopoly as The Portuguese Royal Jewellery Under D. Maria I: 1730-1730, IHA-NOVA FCSH/IN2PAST, Lisboa, 2023. Disponível aqui: RUN: A consolidação do monopólio dos diamantes como pilar da joalharia real portuguesa no período mariano
Imagens
Proposta de apresentação da tiara.
Gravura representando a rainha D. Maria Pia usando a tiara floral, o colar de safiras e diamantes oferecido por D. Fernando II com a grande safira Pollet ao centro, bem como os dois pingentes de safira pendentes nos brincos, Revista O Occidente, n. 339, 21 de Maio de 1888.
Presentes da família real portuguesa oferecidos à princesa D. Amélia na ocasião do seu casamento com o príncipe D. Carlos, Revista O Occidente, n. 273, 21 de Julho de 1886.
Desenho do autor
Todos em: João Júlio Rumsey Teixeira, Uma Tiara com 4.000 diamantes, História e paradeiro da tiara de D. Estefânia, reconvertida por D. Maria Pia e vendida após a Implantação da República – 1858-1912, abril 2020.
https://www.palacioajuda.gov.pt/paginas/6f1331a1-estudos
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:D._Maria_Pia-Santo_Varni_1863.JPG