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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Crónica policial (7) - O importante é a aguardente

Porto, 10 de novembro de 1887

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Uma pipa que aguardava sobre um carro de bois parado na rua da Restauração foi a pista para a importante apreensão de aguardente ocorrida em inícios de novembro de 1887, na cidade do Porto. O perspicaz guarda fiscal Alexandre Alves Barbosa pressentiu que algo não batia certo…e tinha razão. Questionados os presentes sobre a documentação relativa àquele carregamento de bebida alcoólica, facilmente se percebeu que o mesmo não tinha pago impostos, pelo que foi tudo apreendido – transporte e carreteiro incluído. As astutas autoridades foram então à procura da origem da carga ilegal e acabaram por perceber que aquela era apenas a ponta do iceberg.

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Pedindo a abertura compulsiva do armazém da firma António Salgado Peixoto Guimarâes & C. junto ao antigo hospital da Misericórdia do Porto, coadjuvados pelo regedor, ali encontraram mais de 50 pipas de bebidas entradas “pela porta do cavalo”, que é o mesmo que dizer que tinham escapado ao braço do fisco. Eram cerca de 28 mil litros de aguardente de cana, bagaço de cereais e genebra, avaliados em cinco contos de réis. Uma verdadeira fortuna em nectares espirituosos, a que acrescem 90$000 réis do carro e dos animais que o puxavam.

O valor de imposto em falta ascendia a um conto de réis, pelo que este confisco valeu bem a pena aos cofres públicos. O processo terá seguido as tramitações legais, com responsabilização e pagamento de multas por parte dos infratores.

Imagina-se a agonia dos fregueses das tabernas, privados do fornecimento atempado de tão essenciais produtos!

As bebidas brancas, aliás, eram um assunto muito sério no Portugal de então. A atestar essa relevância – para além dos montantes mencionados – estavam mais duas grandes notícias publicadas no mesmo jornal.

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Dava-se conta da entrada no mercado da Pérola de Portugal, aguardente produzida por Narciso Vieira Borges, proprietário do armazém Concorrência Leal, na rua da Atalaia. Foi atestada “por alguns dos mais distintos médicos de Lisboa” como “uma bebida das mais perfeitas que se tem fabricado no nosso País”, capaz de preparar o estômago “para resistir a qualquer irregularidade que lhe possa perturbar as funções regulamentares tão necessárias à saúde”.

Anunciava-se igualmente o celebrado cognac Sicard, que a Anselmo Franco & C. tinha à venda, na rua Ivens, igualmente na capital. Também era aconselhado para auxiliar as funções do aparelho digestivo e recomendava-se juntar a leite  para atender às “afeções do peito”, devido à sua pureza e qualidade.

 

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Nota: as imagens são meramente ilustrativas da época e do tema.

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Fontes

Hemeroteca Digital

Hemeroteca Digital de Lisboa

Diário Illustrado

10.11.1887

Imagens

Arquivo Municipal do Porto

https://gisaweb.cm-porto.pt/

Emílio Biel e Companhia, cota F-NV/1-EB/11/43.

Foto Guedes, cotas F-NV/FG/9/24224, F-NV/FG/9/24245

 

Quando o Torrão quis voltar a ser concelho

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Em Portugal há diversos territórios que não se resignaram a perder a independência ou que renegaram os municípios que lhes calharam em sorte nas reformas administrativas.  Em alguns casos, ensaiaram-se rebeliões ou rogou-se ao poder político para atender à vontade dos povos. Foi o que fizeram as gentes do Torrão que, durante o século XIX, foi disputado pelos municípios de Alvito, Viana do Alentejo e, claro, Alcácer do Sal, ao qual, mesmo por vezes contrariados, os torranenses continuaram a pertencer.

 

A 9 de julho de 1887, o Diário do Governo publicava um abaixo-assinado, iniciativa da população do Torrão. Queriam ser independentes e, por isso, pediam ao governo a criação de um concelho administrativo com sede naquela vila, argumentando que haviam sido autónomos desde a atribuição de foral e queriam voltar a essa condição.

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Na época, a freguesia tinha 602 fogos, 1.554 prédios inscritos na matriz predial e um bastante respeitável rendimento coletável de 35 contos 499 mil réis, pagando mais de um conto de réis de contribuição sumptuária, renda de casas, indústria e décima de juros, para além de 700 mil réis de contribuições indiretas. Tudo junto, perfazia uma coleta muito superior a qualquer freguesia próxima.

As gentes do Torrão, orgulhosas das suas capacidades, revoltavam-se contra o que classificavam como “particularíssimas influências da vizinha freguesia de Alvito”, “menos importante” do que aquela vila, mas que conseguiu, “em seu proveito, a transferência da sede do concelho, com grave prejuízo dos interesses e prosperidades do Torrão” - na imagem, o edifício dos antigos Paços do Concelho, sede da Junta de Freguesia.

Em consequência dos “vexames da administração” de Alvito, os habitantes do Torrão viram-se obrigados a pedir a sua anexação ao concelho de Alcácer do Sal, o que aconteceria a 3 de abril de 1871.

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Ora, a sede deste município localiza-se a 34 quilómetros do Torrão e, se hoje, com estrada em boas condições, o percurso se faz em cerca de 35 minutos, imagine-se o que tinham de penar as populações quando precisavam de tratar de assuntos que exigiam a deslocação a Alcácer do Sal, tendo de atravessar “um grande ribeiro”, que nem sempre permitia a passagem, o que implicava “grande perda de tempo” e prejuízos, pois era até “impossível ir e voltar no mesmo dia”.

A resolução de um qualquer assunto implicava, frequentemente, faltar ao trabalho dois ou três dias, algo especialmente penoso para os menos abastados, que tinham, “de mais a mais, às vezes, de mendigar em Alcácer o próprio sustento”.

Isso mesmo argumentavam os abaixo-assinados. Embora reconhecessem uma “administração mais regular” por parte do município alcacerense, diziam que com administração do concelho, presidente de câmara e escrivão a tal distância, não podia haver governo satisfatório e os habitantes sofriam “graves transtornos e inconvenientes” com este estado de coisas.

Efetivamente, na época, Torrão tinha mais de 2 mil habitantes (mais do que hoje possui) e tendia a aumentar a sua população, pois empregava muita gente nas suas propriedades agrícolas, pelo que, entendiam que bem mereciam “proteção por parte dos poderes políticos”.

“Se no Torrão houver administração própria e a presença de autoridades que deem unidade a todas as atividades e as estimulem no caminho dos progressos industriais e agrícolas”, a vila “torna-se com facilidade um centro importante com grande aproveitamento dos seus moradores e também da fazenda pública”. Pediam, assim, para voltarem a ser sede de concelho, sozinhos ou com qualquer outra freguesia que quisesse integrar esse novo município

Como estas reivindicações não foram atendidas, em 1891, as gentes do Torrão “voltam à carga”, desta feita apelando para serem anexados ao concelho de Viana do Alentejo, medida que consideravam “de grande vantagem e de toda a utilidade para os povos da freguesia”, pois obstava às “dificuldades, incómodos, despesas e prejuízos”, que enfrentavam por continuarem ligados a Alcácer do Sal.

Não consta que os governos tenham ido ao encontro das pretensões dos torranenses, pelo que a freguesia do Torrão permanece, até hoje, parte integrante deste concelho.

 

À margem

Ao longo do século XIX foram várias as alterações à configuração do concelho de Alcácer do Sal e seus vizinhos, um pouco ao sabor das reformas administrativas, que também mexeram internamente, extinguindo e criando freguesias.

Em meados da década de 30 do século XIX, tinha 11 freguesias: Santa Maria do Castelo e Santiago, Montevil, Palma, Santa Susana, São Mamede do Sádão, São Martinho, São Romão do Sádão, Sítimos, Vale de Guizo e Vale de Reis.

Em 1835 São Mamede passa para Grândola, em 1871, Alcácer recebe a freguesia do Torrão e, em 1895, passa a integrar Cabrela e Landeira, antes pertencentes a Montemor-o-Novo e que regressam a esse município três anos depois.

Também a região a que o concelho de Alcácer do Sal pertence não foi sempre a mesma. Em 1835 integra o distrito de Lisboa, então criado e ali permaneceu quase um século, até 1926, ano da criação do distrito de Setúbal, do qual passou a fazer parte.

Durante o Estado Novo, a reorganização administrativa de 1936 impõe Alcácer do Sal na nova província do Baixo Alentejo. Nesse ano, são extintas as freguesias de Montevil, Palma, São Martinho e Vale de Reis (integradas em Santa Maria do Castelo); Sítimos e Vale de Guizo (anexadas a Santiago); São Romão, absorvida pelo Torrão.

Em 1969 volta a fazer parte de Lisboa (sub-região do Litoral), mas, dez anos depois, é outra vez “entregue” ao Alentejo e, em 1989. passa a estar no Alentejo Litoral.

Em 1984 a freguesia de São Martinho retoma a autonomia e, em 1989, é criada a freguesia da Comporta.

Finalmente, em 2013, as freguesias de Santa Maria, Santiago e Santa Susana são unidas numa única divisão administrativa que, já este ano (2025), volta a subdividir-se nas três freguesias mencionadas.

Depois, há a história - realidade ou ficção - de a praia da Comporta já ter pertencido ao concelho de Alcácer do Sal e ter sido desprezada, num tempo em que a praia de nada valia.

Mas isso é outra história...

 

Fontes

Diário do Governo

https://digigov.cepese.pt/pt

15.04.1871, 09. 07.1887, 16.06.1891

Ana Tomás, Nuno Valério, Autarquias locais e divisões administrativas em Portugal 1836-2013, Gabinete de História Económica e Social, Instituto Superior de Economia e Gestão Universidade de Lisboa.

 

 

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

Pela imprensa (32): casamentos a peso de ouro

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Muito antes do surgimento de sites da especialidade e do televisivo “Casados à Primeira Vista”, já existiam instituições cuja missão era fazer o mach perfeito, que é como quem diz, o emparelhamento ideal entre pessoas que buscavam um matrimónio feliz, quiçá para o resto da vida. As agências de casamentos, umas mais sérias do que outras, terão surgido na primeira metade do século XIX nos sempre modernos Estados Unidos da América. Por cá, encontramos estes anúncios que nos dão conta, entre 1919 e 1920, da existência de um Matrimonial Club of New-York, sediado na cidade do Porto.

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Este misterioso club sobre o qual foi muito difícil encontrar informação – talvez devido ao sigilo próprio de negócios tão delicados - apregoava conseguir o par certo, mas também uma muito recomendável vantagem financeira decorrente dessa união. Um “dois em um” sonhado por toda a gente: sorte ao amor e ao dinheiro!

A possibilidade de encontrar um parceiro estava, assim, ao alcance de (quase) todas as classes sociais, pois a inscrição era bastante flexível e aberta a pessoas com fortunas entre os 5 e os 500 contos.

Para além do nome, o club parecia ter um alcance internacional e garantia já ter sido responsável por importantes casamentos “e outros muitos que já estão em relações diretas”.

Neste anúncio em particular, oferecia-se aos cavalheiros que se quisessem candidatar, uma noiva uruguaia, descendente de brasileiros, órfã, independente, elegante e instruída, para além de dotada de 100 contos. Um achado para qualquer moço casadoiro!

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Um outro anúncio era ainda mais aliciante, mas algo desesperado. Por 170.000 pesos em ouro, comprava-se noivo para senhorita de 30 anos, educada e bondosa. O pretendente teria apenas de ser sério, demonstrar boas referências e, enfim, estar disposto a “evitar escândalo social”, o que quer que isso quisesse dizer.

Certo é que este anúncio desapareceu tão enigmático quanto tinha aparecido, seis meses após a primeira publicação. Não terá sido fácil encontrar o cavalheiro indicado para prevenir tal melindre que, muito provavelmente, maculava a honra da senhorita e, com tão longa espera, é bem possível que o escândalo não se tenha furtado de aparecer.

Os anúncios ao Matrimonial Club of New-York também deixaram de marcar presença nos jornais em meados de 1920, permanecendo pouco mais de um ano.

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Desconheço se o negócio não vingou em Portugal ou se escolheu outras formas de se divulgar, mas sei que algumas experiências deste género não passavam de fraudes. Em 1895, soube-se que o Matrimonial Club of New York, ao qual o “nosso” foi buscar o nome, era, afinal, “um velho vigarista astuto” e mais dois homens. O fito eram as múltiplas taxas que os “sócios” tinham de pagar para fazer os seus processos avançar em direção ao amor, que tardava sempre.

Outros, aparentemente, funcionavam melhor. A New Plan Company, sediada em Kansas City, Missouri, por exemplo, alegava ter tido mais de 32 mil membros entre 1911 e 1917 e muito sucesso como alcoviteira. Apregoavam as características físicas, psicológicas e virtudes morais dos solteiros e demais desimpedidos a seu cargo, bem como a idade, peso e altura, formação, gostos e, claro, o rendimento… porque isto de amor e uma cabana só mesmo na canção do José Cid, nos reality shows ou em qualquer outra imaginação prodigiosa e idílica. 

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Nota: as fotografias publicadas são meramente ilustrativas de casamentos da época (inícios do século xx), na cidade do Porto.

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Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital

Illustração Portugueza

12.05.1919, 23.02.1920, 17.05.1920

 

The Catholic Telegraph

https://thecatholicnewsarchive.org/?a=d&d=TCT18950228-01.1.6&

28.02.1895

 

The Democratic Standard

https://newspaperarchive.com/democratic-standard-mar-15-1895-p-4/

15.03.1895

 

The Basthust Daily Free Press and Mining Journey

https://trove.nla.gov.au/newspaper/article/64337839

 

12.08.1902

 

https://chrisenss.com/the-new-plan-company-catalog-for-matrimony-2/

The New York Times

https://www.nytimes.com/1922/10/22/archives/church-sponsors-matrimonial-club-organization-formed-to-take.html

22.10.1922

 

chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://historicnewspapers.sc.edu/lccn/sn84026897/1899-03-22/ed-1/seq-4.pdf

https://www.facebook.com/story.php?story_fbid=1183646790437650&id=100063770192323

 

Imagens

Arquivo Municipal do Porto

Foto Guedes, F-NV/FG-M/11/12, F-NV/FG-M/11/120