Eleições com tumultos e suspeita de fraude
Uma urna construída de propósito para ser aberta sem deixar rasto, gente armada escondida onde os votos ficaram guardados, muitas suspeitas e algumas ameaças marcaram as eleições em Alcácer do Sal. Francisco e Joaquim Mendes Núncio, bem como Francisco António Branquinho Lança e Joaquim Gomes Bolas foram implicados nas acusações.
Em outubro de 1892, o País foi a votos. Por todo o País se registaram tumultos, suspeitas e uma enorme confusão até ao apuramento final, que os jornais bem documentaram. Em Alcácer do Sal, houve fortes indícios de fraude nos resultados. Urnas construídas propositadamente para poderem ser abertas sem ninguém dar conta, pessoas escondidas e armadas no espaço onde estavam guardados os votos e pressão sobre os eleitores. Estas foram algumas das acusações lançadas pelos responsáveis locais do Partido Progressista contra os “regeneradores”, que acabaram por ganhar as eleições, num clima de grande crispação, ameaças e protestos formais de parte a parte.
Tratava-se de escolher o deputado eleito pelo círculo 80– Setúbal, ao qual Alcácer do Sal pertencia. A grande disputa era entre Jaime Artur da Costa Pinto (Partido Regenerador), já anteriormente parlamentar em diversas legislaturas e o empresário António José Batista (Partido Progressista). Ambos almejavam ser os escolhidos.
Mesmo antes do ato eleitoral, perspetivavam-se motins por estas bandas e, assim que se contaram os votos, choveram os protestos oficiais apresentados em Alcácer do Sal, tendo como fundamento um conjunto de situações consideradas irregulares e passíveis de poderem ter influenciado os resultados.
Para começar, não presidiu à mesa de voto o cidadão formalmente nomeado para tal – Joaquim dos Santos Coelho – que até se encontrava na igreja onde decorria o ato. Em vez disso, atrás do presidente da mesa estavam os cidadãos Joaquim Gomes Bolas e Joaquim Mendes Núncio, “com um saco”, contando boletins do candidato Jaime da Costa Pinto, entregando e trocando as listas, enquanto, sem que tivesse havido qualquer alteração da ordem, foram expulsos daquele espaço todas pessoas que não eram eleitores.
Acrescenta-se que, quando começou o escrutínio, foi a mesa cercada por cordões de força armada, com o fim de impedir que os partidários de António José Batista fiscalizassem a operação.
Paralelamente, contrariando o que mandava a lei, os votos não foram contados nas duas horas depois das chamadas e, em vez de terem sido guardados num cofre com três chaves, como também era legalmente exigido, foram fechados numa urna construída de propósito para esta função, mas que, acusavam os “progressistas”, era facilmente aberta por baixo, sacando os parafusos que prendiam o pé e sem que se quebrassem os selos que tinham sido colocados na abertura superior.
Acresce que a urna foi depois arrecadada num espaço da igreja, que, na opinião dos que apresentaram a reclamação, não oferecia a devida segurança, tanto por a porta ter apenas uma fechadura, como, especialmente, por se ter sabido que no interior do templo ficou escondida gente ligada aos “regeneradores”.
Disso mesmo deram conta às autoridades que, indo ao local, ali prenderam Francisco Mendes Núncio e Francisco António Branquinho Lança, este, membro da mesa e armado com um revólver.
Ora, face a estas denúncias, contestadas pelos elementos do outro partido político, o Juiz de Direito da comarca de Alcácer do Sal analisou os factos e entendeu que só deveria ter em conta as ações que pudessem influenciar os resultados eleitorais.
Considerou que a presença de duas pessoas fechadas na igreja, passando a noite no local onde se encontravam os votos, poderia ser alvo até de um processo criminal, mas que, como não havia sinais de a urna ter sido aberta, deveria dar a eleição como válida.
Assim, ganhou Jaime Artur da Costa Pinto, apoiado pelo Partido Regenerador e, ainda mais importante, proposto pelo maior latifundiário do País, José Maria dos Santos. O perdedor, António José Batista, conhecido como o candidato das filarmónicas, era um importante empresário da indústria litográfica e terá gasto mais de 30 contos de réis na campanha. Nesse mesmo ano, seria eleito presidente da Câmara Municipal de Setúbal, onde se estabelecera. Ali esteve até 1899, voltou a ser eleito entre 1906 e 1910, promovendo muitos melhoramentos naquela cidade.
Quanto ao deputado eleito, permaneceu no parlamento até 1906, sempre com uma atividade intensa à qual se devem diversos projetos, particularmente nos concelhos da margem sul do Tejo. Sobre este episódio eleitoral, deixou escrita a obra “Eleição de Setúbal. Lenda de Alcácer do Sal – A Verdade dos Factos
À margem
O Partido Progressista, fundado em 1876, passou a alternar no poder em Portugal com o Partido Regenerador, mais conservador e fundado durante a denominada Regeneração, período entre (1851 – 1868). Em Alcácer do Sal (na imagem), esta rivalidade foi em grande parte responsável por uma divisão da população, em particular dos senhores mais importantes da terra, que dominavam o seu grupo de amigos e correligionários e, portanto, o número de votos correspondente a estes cidadãos eleitores, visto que o voto não era universal e só uma pequena percentagem da população tinha esse direito.
As divisões agudizaram-se em 1878. António Caetano de Figueiredo, Visconde de Alcácer do Sal, era o “chefe” local dos” regeneradores” e António de Campos Valdez liderava os “progressistas”. Haviam sido amigos, compadres até, e dividiam ente si as responsabilidades políticas. O primeiro foi presidente de Câmara durante vinte anos, alternando apenas com pessoas de sua confiança e/ou família que reuniam o consenso localmente.
Quando Valdez surgiu a disputar esse poder, “zangaram-se as comadres” e dividiram-se as águas.
Foi eleito presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal em 1878. No ano seguinte, concorreu a deputado mas não conseguiu ainda ser eleito, apesar de ter ganho na sua terra. O "seu" Partido Progressista teve uma estrondosa vitória, elegendo 106 lugares no parlamento e 77,4 por cento dos votos, naquele que foi o segundo ato eleitoral nacional em que aquela força política participou. Uma semana apenas depois destas eleições, Valdez funda a Sociedade Filarmónica Progresso, hoje Progresso Matos Galamba, a Pazoa.
A mítica recusa da participação da banda da Sociedade Amizade, pertencente ao Visconde de Alcácer do Sal, na Procissão do Senhor dos Passos organizada por Valdez, durante a Quaresma de 1879 foi, afinal, uma consequência de ter perdido o domínio da Câmara Municipal de Alcácer do Sal para o antes amigo. Com a fundação da nova filarmónica, perde igualmente o exclusivo das bandas de música. Nasce uma rivalidade que, embora atenuada, permanece até hoje.
Mas isso é outra história...
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Nota: a primeira imagem diz respeito às eleições em Lisboa, em 1908.
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Fontes
Arquivo Histórico Parlamentar
Eleição de um Deputado à XXIX Legislatura 1893, PT-AHP/CD/CVPoderes/S56/UI73
Hemeroteca Digital de Lisboa
Diário ilustrado
25.10.1892, 26.10.1892, 27.10.1892, 28.10.1892, 01.11.1892
Diário do Governo Digital
Diário do Governo, 30.05.1893
Imagens
Arquivo Municipal de Lisboa
Alberto Carlos Lima, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/000254
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
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