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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A deslumbrante visita do Rei dos Reis a Portugal

 

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O sereníssimo imperador foi recebido como se da própria encarnação de Deus se tratasse, numa visita cheia de curiosidades, alguns momentos caricatos e outros premonitórios. Ninguém adivinharia que ambos os regimes - o visitante e o anfitrião - se finariam no mesmo ano de 1974.

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Portugal engalanou-se e aprimorou-se com toda a pompa para receber o Rei dos Reis*. Em nome de uma amizade antiga entre os dois povos – o português e o etíope - Haile Salassie passou seis dias deslumbrantes no nosso País, rodeado pela elite do poder, pela ostentação das velhas glórias do nosso passado descobridor e por demonstrações do poderio militar português. O descendente do rei Salomão e da rainha de Sabá*, nada menos que Deus encarnado na Terra*, passeou-se por terras lusas entre férias em Biarritz e banhos nas termas de Baden-Baden. Ninguém então adivinharia que ambos os regimes – o visitante e o anfitrião – se finariam no mesmo ano de 1974.

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A viagem teve lugar muito antes, mais propriamente no verão de 1959, com ampla e detalhada narração nos jornais, que não se limitavam às questões de Estado e representação nacional, mas espiolharam repetidamente as indumentárias da princesa Aida, neta do imperador, os presentes trocados e os soberbos menus degustados por tão ilustres visitantes.

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Lisboa parou para ensaiar a receção e paralisou novamente durante o verdadeiro evento, em pleno Terreiro do Paço. Haile Salassie chegou a bordo do escoltador oceânico Nuno Tristão e pisou solo português pelas 10h30 do dia 25 de junho.

Todo o aparelho de Estado compareceu, mas o governante etíope foi recebido em primeira mão pelo presidente português, Américo Thomáz (em destaque nas imagens 1,2 e 6). Ouviram-se salvas de 21 tiros disparados pelas baterias instaladas no Castelo de São Jorge e em embarcações em pleno Tejo.

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Muita gente a assistir – até porque o comércio foi instado a encerrar portas para acompanhar o importante acontecimento e houve severas limitações ao trânsito automóvel e até à navegação no rio – colchas nas janelas, ruas decoradas para ver passar a comitiva de oito automóveis, integrando o Rolls Royce descapotável da presidência portuguesa.

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A tónica desta primeira cerimónia marcaria todas as outras – e foram muitas – que se realizaram em território nacional.

 

o imperador com a neta com marcelo mathias e a mul

 

Tratava-se de uma visita de amizade, sem fins políticos ou económicos. A Etiópia teria com Portugal as mais antigas relações estáveis e contínuas com um país europeu, que remontavam ao século XVI, altura em que esta nação cristã repeliu os invasores muçulmanos com a ajuda de tropas e armas lusas.

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Toda a visita, aliás, foi dominada pelo passado. Haile Salassie – que se fazia acompanhar de três ministros e um número não determinado de altos dignitários - visitou alguns dos nossos mais grandiosos monumentosos: Jerónimos, prestando homenagem a Vasco da Gama - Sintra, Alcobaça, Batalha, Leiria e Mafra.

 

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Entre os poucos locais modernos onde foi conduzido, destaca-se o estádio do Restelo, onde, por sugestão do Ministro dos Negócios Estangeiros, Marcelo Mathias (nas imagens 7 e 9) , “queimou” alguns minutos, já que estavam nas imediações e se encontravam adiantados face à agenda traçada.

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Modernos também os numerosos exercícios bélicos, logo à chegada, em Mafra, na Ota e em Santa Margarida - com vários milhares de militares envolvidos - por mar (Tejo), terra e ar - e que muito interesse suscitaram no governante etíope.

O digníssimo imperador, que se orgulhava de ter as maiores forças armadas africanas - acabaria por ser agraciado com as estrelas de coronel do nosso exército.

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Muitos e variados foram também os presentes e as honrarias trocadas. Américo Thomáz recebeu um colar da rainha do Sabá, Haile Salassie, foi presenteado com réplicas de caravelas e luxuosas edições de Os Lusíadas, apesar de não ter hábitos de leitura.

À chegada à Câmara de Lisboa (imagen 11), por exemplo, esperavam-no pajens vestidos à moda do século XVI, segurando uma nau com corvos vivos.

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O imperador ficou hospedado no Palácio de Queluz, em aposentos que já haviam recebido a Rainha Isabel II, mas onde, na véspera, ainda se testaram peças de mobiliário trazidos do Palácio Nacional da Ajuda e do Palácio das Necessidades, ao mesmo tempo que se davam os últimos retoques na desgastada pintura dos vetustos quartos. Aí, tinha ao seu dispor 15 criados e um mordomo.

Para além dos faustosos banquetes, as refeições privadas eram servidas pelo Cozinha Velha. Nas ementas, todas em francês, pois essa era a cozinha de eleição do sereníssimo senhor – as únicas palavras em português figuravam na última linha: “café de Timor”.

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À margem

Haile Salassie foi um dos mais influentes políticos africanos do século XX. Era visto como uma encarnação do próprio Deus e até esteve na origem do movimento religioso jamaicano: Rastafári.  Orador eloquente, protagonizou discursos históricos, condenando o domínio de uns povos sobre os outros.

O Grande senhor*, foi o primeiro governante etíope a sair do país e tinha uma predileção especial pelas viagens ao estrangeiro. Permitiam-lhe, de certo modo, alhear-se da complexa agenda local e dos problemas internos, embora cada deslocação abrisse uma verdadeira guerra entre os seus próximos, porque todos se acotovelavam e moviam influências para o acompanhar.

No seu País, apesar das muitas reformas levadas a cabo, o final do seu reinado ficou marcado pelas grandes fomes que mataram milhões de etíopes e contrastavam com a opulência salomónica da corte do imperador.

Durante a visita a Portugal, em 1959, um dos exercícios levados a cabo pelas nossas forças armadas pareceu premonitório, pois simulava um ataque de forças marciais rebeldes, defensoras de um regime político diferente do então dominante.

É que, tal como o sistema de governo que o recebeu em Portugal – o Estado Novo – a corte de Haile Salassie seria deposta por um golpe militar, também em 1974. Tanto Salazar, como Haile, já muito idosos e debilitados, pensariam até ao fim que ainda governavam.

Mas isso é outra história…

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*Títulos e designações - de entre os muitos - atribuídos a Haile Salassie, batizado Tafari Makonnen e depois chamado de Rás Tafari, imperador da Etiópia entre 1930 e 1974.

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Fontes

Fundação Mário Soares

www.casacomum.org

Diário de Lisboa

Ano 39º; nº13.154 – 23 jul 1959

Ano 39º; nº13.155 – 24 jul 1959

Ano 39º; nº13.156 – 25 jul 1959

Ano 39º; nº13.157 – 26 jul 1959

Ano 39º; nº13.158 – 27 jul 1959

Ano 39º; nº13.159 – 28 jul 1959

Ano 39º; nº13.160 – 29 jul 1959

Ano 39º; nº13.161 – 30 jul 1959

Ano 39º; nº13.162 – 31 jul 1959

 

O Imperador, de Ryszard Kapuscinski; Livros do Brasil - 2019

 

Haile Selassie - Wikipedia

 

Imagens

Visita do Imperador da Etiópia a Portugal – RTP Arquivos

Arquivo Diário de Notícias publicado em Expresso | O rei dos reis

Quando o Prestes João finalmente visitou o país de Pêro da Covilhã (dn.pt)

PROSIMETRON: Praias e lugares da minha infância -3

 

Fundação Mário Soares

www.casacomum.org

Diário de Lisboa

Correspondência com Salazar (1947-1968), de Marcello Mathias; seleção, organização e notas de Maria José Vaz Pinto – 2ª edição – Difel – Difusão Editorial Lda - Lisboa

Arquivo municipal de Lisboa

Arquivo Municipal de Lisboa (cm-lisboa.pt)

Armando Maia Serôdio

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SER/003231

PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/SER/003233

2 comentários

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    CV 09.09.2021

    Muito obrigada! Aconselho a leitura do livro O imperador. É muito interessante e chega a ser hilariante, a forma como tudo se organizava no palácio do grande senhor.
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