A escandalosa nyassada que enlameou o País
Emissão ilegal de moedas e selos, suspeitas de corrupção e desvio de fundos, desaparecimento de documentos, subscritores fictícios, falsas declarações…enfim, uma sucessão de escândalos marcou o arranque da Companhia do Nyassa, à qual o Estado Português deu a administração da vasta área de Cabo Delgado, em Moçambique, onde pouco ou nada se fez.
Os jornais, especialmente os de inspiração republicana, fizeram um festim, tanto mais que o ambiente ainda estava tenso devido ao ultimato britânico, de 1890. A instabilidade, aliás, foi uma constante na história da Companhia do Nyassa, cuja formação foi autorizada no ano seguinte.
O objetivo era claro. Não tendo Portugal meios para exercer uma colonização efetiva como era obrigado pela pressão internacional, concedia essa prerrogativa a uma entidade privada, uma companhia majestática, que adquiria, assim, vastas competências na antiga província moçambicana de Cabo Delgado, com o dobro da área da Metrópole.
Foi neste contexto que a firma Bernardo Daupias & Cª ficou com a administração e exploração daquele território, mas não tinha originalmente dinheiro para pagar a caução exigida, tendo de se rodear de outros investidores portugueses. Não obstante, pouco depois e ainda antes de tomar posse do território, o privilégio foi adquirido por capitais ingleses e franceses, passando a sede para Londres.
Nesse período deu-se um dos mais extraordinários episódios deste percurso atribulado.
George Wilson, o gerente da já então denominada Companhia do Nyassa, talvez inebriado com os amplos poderes daquela organização, mandou cunhar moedas com diversos valores e selos, que pretendia colocar em circulação na região sob a sua chancela. Pequeno grande problema: a autoridade para cunhar moedas e emitir valores selados pertence aos soberanos de estados e nações, não a empresas privadas.
Ao que constou, aquele cidadão britânico nunca pediu autorização para tal ousadia que violava as leis de Portugal, afinal, ainda o país ao qual pertencia a região, cuja posse ainda nem tinha sido concedida. Alegadamente, a administração da companhia também não foi informada.
Os valores chegaram a Ibo e os “patrões” de George Wilson desencadearam um conjunto de enérgicas movimentações no sentido impedir que as moedas – distribuídas por 136 caixotes – e os selos – dois caixotes deles – fossem postos a circular.
O atrevido foi despedido e toda a remessa expedida para Lisboa, onde chegou a 3 de julho de 1895. As moedas foram derretidas e inutilizaram-se as estampilhas postais
Apesar da rapidez, não se conseguiu impedir que algumas unidades escapassem para as mãos de interessados, figurando hoje como exemplares raros em coleções privadas. Ostentavam uma misteriosa torre redonda fortificada, com ameias e merlões, cuja inspiração se desconhece, pois, aparentemente, não tem paralelo naquela região moçambicana e pode ser apenas fruto da imaginação fértil do inglês que as mandou produzir.
Em paralelo com este triste episódio, uma portaria de 11 de setembro de 1894 deu finalmente autorização para a tomada de posse das terras, mas não faltou muito até que soassem novas histórias mirabolantes sobre a Companhia do Nyassa, que deram brado junto da opinião pública.
Durante meses, nos jornais da oposição, a palavra “nyassada” passou a sinónimo de barafunda, tranquibernias e embuste. O republicano Defensor do Povo, não se coibiu de apelidar de trapalhice, marosca, rapinagem e ladroeira as diversas irregularidades relatadas e que chegaram a ter eco em ação legal, com base em procedimentos à revelia dos estatutos e da lei, que se souberam devido a desentendimentos internos entre elementos do conselho de administração e do conselho fiscal.
Na mira das notícias estavam sobretudo homens ligados à companhia e o comissário régio, a quem chegaram a chamar de “gatunos” cuja ação conspurcava o governo, suspeito de estar “cúmplice e enlameado no lodaçal do Nyassa”.
Ultrapassadas estas crises iniciais, os problemas não ficaram sanados. A firma mudou de mãos diversas vezes, sempre maioritariamente estrangeiras, o que contrariava as bases da concessão.
Cerca de 35 anos após a sua fundação, a Companhia do Nyassa continuava a encher páginas de jornal pelas piores razões: “deplorável orientação”, alienação ilegal de direitos e “péssima administração dos territórios de Cabo Delgado”, já então palco de conflitos e debandada das populações, algo que, tragicamente, se repete na atualidade.
À margem
As companhias majestáticas tinham a incumbência de fazer uma ocupação efetiva dos territórios, à qual Portugal se havia comprometido após a conferência de Berlim, em 1884/1885. Deveriam proceder ao reconhecimento do território, submeter à coroa portuguesa os chefes tribais revoltosos e explorar as riquezas naturais presentes, entregando uma parte do lucro ao Estado colonial.
Estas companhias eram uma espécie de estado dentro do Estado, mas, no caso do território de Cabo Delgado, praticamente tudo o que a concessão previa ficou por fazer ou sê-lo-ia tarde e a más horas. Até 1925, não se haviam construído escolas, nem a prometida linha de caminho-de-ferro ou a rede de telégrafo. Não se haviam arroteado e irrigado os terrenos, ou criado condições para a instalação de colonos.
A todos estes compromissos, a Companhia do Nyassa respondeu optando pela estratégia mais fácil e com menor investimento possível. Limitou-se a beneficiar da competência para cobrar impostos e taxas aduaneiras num vasto conjunto de exportações, obtendo uma boa parte dos seus proventos com a exploração de mão-de-obra forçada e mal paga, bem como com a sua exportação para a África do Sul e para outras províncias onde esta era mais necessária.
Isto, mais de um século após a abolição da escravatura na Metrópole (1773), cinquenta anos depois de ter sido decretada a proibição da exportação de escravos em todos os domínios portugueses (1836) e duas décadas passadas do decreto que aboliu a escravidão em todas as colónias portuguesas, passando à condição de libertos, todos os escravos (1869).
Mas isso é outra história…
Fontes
Manuel Joaquim de Campos, Moedas ilegais destinadas à áfrica Portuguesa, in O Archeólogo Português, vol XI, Museu nacional de Arqueologia, 1906.
Pedro Batalha Reis, Moeda Inédita da Companhia do Niassa, in NVMMVS, nº10, Sociedade Portuguesa de Numismática, 12.1955.
António Miguel Trigueiros, Cobre Amoedado para a África Portuguesa, in NVMMVS, nº2 S. IX/X, Porto, Sociedade Portuguesa de Numismática, 1986-1987
Hemerotena Digital Brasileira – Memória Brasil
O Defensor do Povo, 09, 12, 16, 26.05 e 02.06.1895.
Hemeroteca Digital de Lisboa
Gazeta das Colónias, 15.01.1925, 25.12.1924, 12.02.1925
https://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/GazetadasColonias/GazetadasColonias.htm
https://pt.wikipedia.org/wiki/Companhia_do_Niassa
https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/Memoria-extincao-escravidao.aspx
Imagens
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Arquivo Fotográfico da Companhia de Moçambique
PT/TT/CMZ-AF-GT/N/1/3/19
PT/TT/CMZ-AF-GT/N/2/1/1
Hemeroteca Digital de Lisboa
Illustração Portugueza
11.11.1907
Pedro Batalha Reis, Moeda Inédita da Companhia do Niassa, in NVMMVS, nº10, Sociedade Portuguesa de Numismática, 12.1955.
A Mala-Posta: Os "misteriosos" selos de Cabo Delgado (1) (mala-posta1.blogspot.com)