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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A extraordinária fuga do ladrão contorcionista

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Foi o primeiro - e durante muito tempo o único - a conseguir escapar da Cadeia Penitenciária de Lisboa. Estava no terceiro andar e esgueirou-se por entre as grades. Esta é a audaciosa evasão do larápio com alma de gato.

Nunca ninguém tinha conseguido fugir da Cadeia Penitenciária de Lisboa, poucos até tinham-no tentado, porque o imponente edifício ganhara fama de invencível. Até que um homem franzino conseguiu a arriscada e extraordinária proeza. Chamava-se José Maria Tavares e, para além de reconhecido amigo do alheio, chegou a trabalhar como acrobata ambulante.

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Foi na noite de 22 de julho de 1888. Enquanto os outros presos dormiam, o jovem larápio estava em plena atividade. Primeiro tentou arrombar a porta, conseguindo apenas empenar o postigo por onde costumava receber comida.
Não desistiu. Em vez disso, voltou-se para a altaneira janela e, com a pá do lixo que tinha na cela, terá conseguido desaparafusar o caixilho. Entre ele e o ar fresco da madrugada apenas as grossas barras de ferro, com um distanciamento de 15 centímetros entre si.

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Pois foi pelo diminuto espaço entre o varão superior e o arco de alvenaria que conseguiu primeiro enfiar a cabeça e depois o corpo.
Como homem prevenido que mostrou ser, o Tavares levava consigo uma espécie de corda que fez com as tiras que rasgou dos lençóis em que tinha dormido nos últimos quinze dias.

Conseguiu atá-la a uma estrutura metálica existente na parede exterior e dependurou-se sobre o pátio da penitenciária a uma altura de mais de 12 metros. Com a mesma estratégia, piso a piso, conseguiu chegar ao chão sem ser detetado. Saiu do pátio por um portão aberto(!) e escalou o primeiro muro, com dez metros de altura, usando equipamento e ferramentas (uma escada e um formão) que foi encontrando. Deslizou para o outro lado com a ajuda das cordas de um estendal.

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Trepou também a derradeira muralha usando uma caleira de rega e, como percebeu que morreria se saltasse de tão alto, circulou sobre ela – no mesmo percurso supostamente vigiado por sentinelas a cada 200 ou 300 metros - até se deparar com um candeeiro que lhe permitiu amparar a descida.
Nessa estranha noite de luar, ninguém viu, ouviu ou pressentiu este homem com vinte anos e alma felina.
Estava finalmente na rua. Correu pela estrada da Circunvalação (hoje rua Marquês de Fronteira) em direção ao rio, mas às cinco horas da manhã, o guarda 110 da 1ª divisão, de serviço no Terreiro do Trigo*, fez mais que todas as sentinelas e guardas da Cadeia Penitenciária de Lisboa.
Interpelando José Maria Tavares, facilmente percebeu que algo não batia certo, o que também não era muito difícil, pois o desgraçado apresentava-se vestido da cabeça aos pés com o reconhecido uniforme da prisão, pardo, como todos os gatos em noite de lua cheia.
As desculpas esfarrapadas de nada serviram e foi levado para a esquadra do “Cais dos Soldados”**, onde o interrogatório resultou no seu encaminhamento para o local de onde tão afanosa e audazmente tinha conseguido escapar, contra todas as possibilidades. Às 9 da manhã estava de volta.
José Maria Tavares, provavelmente nunca teria ouvido falar de Houdini - até porque, por aquela altura, o célebre mestre das fugas tinha apenas 14 anos - mas, mesmo sem saber, eram almas gémeas no que às evasões dizia respeito, pois o jovem ladrão já tinha no seu currículo três bem-sucedidas e outras tantas tentativas frustradas.
A vida de crime de José Maria Tavares começou cedo. A primeira condenação foi aos 16 anos. Sempre que fugia ou acabava de cumprir pena, voltava ao roubo, de cavalos e objetos de pequena valia, a avultadas quantias. Roubava a pessoas, mas também a instituições: a secretaria da comarca de Sever do Vouga, a administração do concelho e a estação telegráfica, por exemplo. Tudo servia para alimentar o vício e a barriga.
Tão rocambolesca história não podia acabar bem. Foi solto em 19 de abril de 1890, mas pouco depois regressou àquela casa que bem conhecia. Provavelmente não voltou a ver a sua aldeia natal, Nespereira, na freguesia de Rocas do Douro, porque morreu tuberculoso, na Cadeia Penitenciária de Lisboa, de onde não mais conseguiu fugir.

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À margem

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“Poucos edifícios haverá em Portugal com uma construção e vida mais acidentadas do que a Cadeia Penitenciária”, hoje Estabelecimento Prisional de Lisboa, que recebeu os primeiros presos em 1885, culminando um processo muito polémico e dispendioso com quase vinte anos.
Por ali passaram milhares de presos, mas apenas um número muito reduzido*** tentaram escapar, porque a disposição das celas, o largo fosso e os altos muros, para além da rede de sentinelas, eram suficientes para demover esse impulso.
Até 1913, vigorou um regime de isolamento e silêncio, em parte responsável pela loucura de 513 dos 4.303 presos e pelo suicídio conseguido de 32 homens, a que se juntam largas centenas de outros que, tal como José Maria Tavares, ali morreram de tuberculose.
Algumas tentativas de fuga ficaram famosas, como a do contrabandista espanhol Manoel de Sousa e Silva – Manoelinho que, em 1908, conseguiu arrombar a parede exterior da cela, mas só chegou ao muro, pois foi detetado e capturado. Já no ano passado (2019), um recluso inglês tentou escapar por entre as grades, besuntando-se com óleo e munido dos tradicionais lençóis.
Mas isso é outra história…

……………..

*Na confluência entre a avenida Infante Dom Henrique, a rua do Cais de Santarém e a rua do Terreiro do Trigo, foi o antigo Campo de Lã, onde se faziam execuções capitais. Deve o nome ao celeiro público onde se armazenavam cereais e que aí se localizava.
**Corresponde à estação ferroviária de Santa Apolónia, construída junto ao denominado Cais dos Soldados, e ao extinto Convento de Santa Apolónia.

***Não consegui apurar quantos tentaram e quantos conseguiram. Até 1933, José Maria Tavares tinha sido o único bem-sucedido.
…………………
Já aqui falei da Cadeia Penitenciária de Lisboa e de como os presos eram obrigados a usar um capuz que lhes omitia a cara.

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Fontes
Do Crime e da Loucura, de A. Victor Machado; Henrique Torres – editor; 1933 – Lisboa

Biblioteca Nacional em linha
www.purl.pt
Diário Illustrado
17º ano; nº5491 – 23 julho 1888

Hemeroteca Digital Brasileira
http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx
Jornal da Noite
18º ano; nº5419 – 22 julho 1888
18º ano; nº5420 – 23 julho 1888
18º ano; nº5425 – 28 julho 1888

Diário de Notícias – Rio de Janeiro
Ano IV nº1164 – 20 agosto 1888

https://toponimialisboa.wordpress.com/2015/06/15/o-largo-do-terreiro-do-trigo/

https://maislisboa.fcsh.unl.pt/proxima-paragem-estacao-de-santa-apolonia/

https://sol.sapo.pt/artigo/668523/recluso-tenta-escapar-de-prisao-em-lisboa-utilizando-lencois-e-oleo-

Imagens
Arquivo Fotográfico Digital de Lisboa

Códigos de Referência:
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LSM/000857
PT/AMLSB/NEG/000161
PT/AMLSB/BPI/000004
PT/AMLSB/NEG/000164

Joshua Benoliel
Códigos de Referência:
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001342
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/001217

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