A história atribulada dos primeiros censos modernos em Portugal
Há 157 anos, os portugueses resistiram ao primeiro Recenseamento Geral da População, receando que servisse para aumentar impostos. Os padres foram excluídos, os resultados foram incompletos e controversos e a documentação está em parte incerta.
“Muitas pessoas se recusaram a prestar os devidos esclarecimentos, imaginando ver nestes trabalhos um fim mau e, para o conseguir, foi mister empregarem muita paciência e descer a muitas explicações”, até porque “na paróquia poucos são os que sabem escrever”. O desabafo data de 1864 e é do presidente de uma comissão igual a três centenas de outras criadas em todos os concelhos do País para levar por diante o primeiro Recenseamento Geral da População Portuguesa em moldes “modernos”. Um processo atribulado, complexo e incompleto, “anos-luz” dos atuais censos, que estrearam o preenchimento online.
O avassalador analfabetismo dos portugueses e a desconfiança que o questionário servisse apenas para fundamentar um aumento dos impostos foram apenas dois dos entraves que o recenseamento encontrou.
Foi a primeira vez que a igreja, leia-se, os párocos - responsáveis pela informação produzida anteriormente - ficaram formalmente afastados das operações.
Nem sequer lhes foi pedido para colaborar na divulgação, o que terá sido um erro de estratégia numa época que Portugal, em especial o mundo rural, continuava a ter na religião católica o principal elemento orientador das condutas.
A organização passou, assim, para a administração pública: os governos civis, destes para os administradores dos concelhos e, abaixo, os regedores de paróquia que, ao contrário dos anteriores, nem auferiam qualquer valor pelo cargo que ocupavam. Talvez por isso, o governo instava que se animassem de “patriótico espírito” para levar tão espinhosa missão a bom porto.
No caso de Alcácer do Sal, que se terá repetido noutros concelhos, no entanto, é um padre quem lidera o processo. É dele o lamento no início deste texto, mas os problemas são relatados um pouco por todo o País.
Desde logo, a própria divisão administrativa, nem sempre coincidente com as paróquias. Foram, aliás, precisas 140 correções para se chegar ao valor certo de 3.965 freguesias.
A contribuir para a confusão esteve também a inexistência geral de numeração de polícia nas casas e a enorme dificuldade de encontrar quem quisesse e, acima de tudo, quem tivesse capacidade para executar o recenseamento.
Deveriam ser “pessoas práticas e conhecedoras da freguesia, diligentes, inteligentes e probas”, para além de alfabetizadas, algo escasso por aquela altura, o que obrigou à acumulação de funções num número reduzido de indivíduos.
Em todo o País, foram 8.352 os agentes especiais, que apuraram uma média de 124 fogos cada, recebendo 5 reis por residente.
Cabia-lhes fazer uma identificação das habitações, que serviria de base para a entrega do boletim a preencher por cada núcleo familiar.
Depois faziam a recolha dos impressos, “examinando-os e enchendo os que não haviam sido feitos, em consequência da maior parte dos chefes de família não saberem escrever e não terem pessoa da família que o fizesse”.
Ainda assim, no final, “bateu tudo certo” talvez porque, como relatou o governador civil de Beja, “a autoridade, intimidada pelo efeito da opinião popular”, absteve-se de recensear a população e tratou “de substituir por artifícios de cálculo as cifras verdadeiras que a operação lhe havia de dar”.
O apuramento geral demorou 15 meses, fazendo-se uma análise por freguesia, sexo, estado civil e idade. Não se logrou apurar as profissões, porque as respostas foram imperfeita e incompletamente preenchidas.
Também não se conseguiu fazer a destrinça entre casas habitadas e devolutas, nem entre a origem e a nacionalidade das pessoas.
No relatório final dos censos, só publicado quatro anos depois, afirma-se mesmo que outro teria sido o resultado “houvesse menos negligência” dos agentes e se, destes, tivesse havido “mais reflexão e zelo”.
Muitos dos dados são duvidosos, nomeadamente o registo de mais 70 mil mulheres do que homens, 20 mil homens casados a mais do que mulheres na mesma condição e mais 90 mil viúvas do que viúvos, para além de 200 pessoas com mais de cem anos.
Curiosamente, apesar de se conhecerem os resultados, toda a documentação produzida, nomeadamente os originais dos formulários de fogo e família e os relatórios das comissões, está em paradeiro desconhecido, não se encontrando no Instituto Nacional de Estatística, nem na comissão de estatística do Ministério das Obras Públicas ou do Ministério do Reino. Só se conhecem informações dispersas, provenientes dos governos civis e das comissões, como as referidas, aqui servindo de exemplo a todo o País interior e rural.
À margem
O receio e a desconfiança da população terão contribuído para a falsificação de alguns dados, nomeadamente os que poderiam dar azo a uma maior cobrança fiscal e ao reforço do recrutamento para fins militares, nuns casos “cortando-se” na idade dos mancebos e noutros falsificando o número de criados.
Estes censos surgem em período seguinte à introdução do sistema métrico-decimal e de novos impostos, bem como da atualização das matrizes prediais. Todo este estado de coisas, como bem se compreende, suscitou a ira popular e uma repulsa quanto ao ato de recenseamento.
Mas, as falsificações sempre estiveram presentes em ações deste tipo. No registo paroquial – nascimentos, casamentos e óbitos – que vigorou no nosso país praticamente inalterado até 1859 e constitui uma importante ferramenta para conhecer a população ao longo dos tempos, há relatos de livros mutilados, com grandes lacunas e até adulterados. O recenseamento anual, que o censo de 1864 substituiu e era conduzido pelos administradores dos concelhos, padecia da mesma viciação.
No recrutamento militar, por outro lado, conhecem-se diversas fraudes, nomeadamente, um pároco de Leiria que se dedicou a mudar o sexo das crianças registadas, para “safar” os rapazes que entendia. Mas, há de tudo: administradores de concelhos que acoitavam os mancebos dos municípios vizinhos e ainda situações extremas, como a da freguesia de Carapinheira, Montemor-o-Velho, onde se lançou a “moda” dos jovens preferirem a mutilação do dedo polegar da mão direita ao serviço militar, com operadores especializados na intervenção cirúrgica adequada.
Mas isso é outra história…
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Já aqui antes falei sobre Censos, mas durante o Estado Novo.
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Nota: as imagens são meramente ilustrativas da sociedade portuguesa em finais do século XIX, início do século XX.
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Fontes
Contar (com) as pessoas – O recenseamento geral da população de 1864, de Rui Miguel E. Branco; Revista da História das Ideias – Instituto de História e Teoria das Ideias – faculdade de Letras da Universidade de Coimbra; vol 26 – 2005. Disponível aqui: https://digitalis-dsp.uc.pt/bitstream/10316.2/41681/1/Contar_com_as_pessoas.pdf
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Fundo Junta de Freguesia de Alcácer do Sal – Santiago
Atas da Comissão de Recenseamento
PT/AHMALCS/CMALCS/JFALCSS/51/001
Instituto Nacional de Estatística
1864 - 1 de Janeiro (I Recenseamento Geral da População)
Instituto Nacional de Estatistica, Censos 2011 (ine.pt)
Imagens
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/01/01/089
Arquivo Municipal de Lisboa
Arthus Carlos da Silva Freire
PT/AMLSB/ATF/000149
Alberto Carlos Lima
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001559
José Chaves Cruz
PT/AMLSB/CRU/000471
José Artur Leitão Bárcia
PT/AMLSB/POR/053299
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001905
PT/AMLSB/NEG/000854