A mulher que salvou o palácio de Joe Berardo
A americana resgatou o espaço ao abandono e à incúria a que tinha sido votado por muitas décadas e albergou entre as suas históricas paredes crianças fugidas dos horrores da guerra e da perseguição.
Orlena Zambrisnkie Scoville atravessou o oceano e enamorou-se de um dos mais belos palácios portugueses, salvando-o de décadas de abandono e degradação que deixaram marcas difíceis de apagar. Para além das históricas paredes e dos azulejos únicos, ajudou a resgatar crianças francesas encurraladas pela guerra, que alojou temporariamente na sua “Bacalhôa”, hoje propriedade de Joe Berardo e casa do seu filho.
Foi a 24 de março de 1935 que visitou esta quinta de Azeitão (Setúbal) pela primeira vez, acompanhando umas amigas empenhadas em escrever um livro sobre Portugal. A ela caberia o estudo dos azulejos.
A americana, então com 48 anos, deve ter gostado muito do que viu nesse dia, porque escreveria no seu diário que tinha ficado com o “estranho sentimento” que um dia iria ser proprietária do espaço e restaurá-lo ao seu antigo esplendor.
O problema é que o palácio estava em ruínas e não se encontrava à venda. O conhecido arquiteto Norte Júnior*, ficaria encarregue de entrar em contacto com o proprietário, Raúl Martins Leitão, que detinha a quinta desde 1914, obtendo dos seus cem hectares dois mil litros de azeite e cinco mil de vinho por ano, para além de trigo, laranjas e tangerinas.
Não foi fácil chegar a acordo e, nesse impasse, Norte Júnior ainda tentou seduzir Orlena a optar pela aquisição de um “fine castle” do mais pitoresco que há na zona de Sintra, abandonando a ideia extremamente difícil e dispendiosa de recuperar a “Bacalhôa”.
Mas, nada demoveu Orlena.
Não só conseguiu comprar a quinta, como dedicou os anos seguintes à sua recuperação.
Era um projeto de vida, que iniciou imediatamente, ainda antes da aprovação do projeto de Norte Júnior, por parte da Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em meados de 1936
Contaria também com o apoio técnico do especialista em cerâmica Santos Simões**, já que parte do gigantesco desafio era um verdadeiro quebra-cabeças de azulejos de todas as cores, motivos e épocas, a começar no século XV e a que a proprietária dedicou muito tempo e paciência.
Como base do restauro, foram tidas em conta as inspiradoras aguarelas pintadas por A. Branc*** no século XIX para o primeiro estudo completo sobre a quinta, da autoria de Joaquim Rasteiro.
Todo o edifício estava em muito mau estado e a sua reconstrução, para além de complexa, avultada e onerosa, foi pautada por surpresas, algumas boas, como a descoberta, entre escombros e entulho, de peças de azulejaria e estatuária únicas e irrepetíveis.
Orlena tornou aquela a casa de férias da sua família, decorando-a com mobiliário de época português e tornando-a confortável para a permanência por temporadas, beneficiando da paz que então se vivia em Portugal, quando a Europa vivia um dos seus períodos mais negros, mergulhada na II Grande Guerra.
Foi nessa altura que a americana foi contactada por Martha e Waitstill Sharp, do United States Commitee for the Care of European Children, e aceitou receber na Quinta da Bacalhôa grupos de crianças francesas com idades entre os 5 e os 15 anos, cujas famílias, temendo pela sua segurança, enviaram para lares de acolhimento durante a guerra.
Era ali que aguardavam haver navio disponível para rumarem o Estados Unidos da América.
Apoiando o trabalho do casal - reconhecido posteriormente como “Justos entre as Nações” pelo seu papel no salvamento de judeus neste período – a americana cedeu a sua casa também para outros viajantes fugitivos e colocou ao serviço da causa os seus conhecimentos pessoais, nomeadamente intermediando junto da Nestlé e das companhias de caminho de ferro de Portugal e Espanha, para fazer chegar leite em pó a famílias necessitadas em França.
Mais ou menos na mesma altura, mas no seu país, transformaria a casa de família, no Connecticut, num lar para a recuperação de oficiais ingleses cujos navios haviam sido torpedeados durante o conflito, estando também empenhada, cá e lá, noutros organismos de apoio à infância
A família Scoville ficaria ligada a Azeitão durante 60 anos, embora Orlena tenha morrido no seu palácio de encantar, no dia 7 de agosto de 1967. Os desmesurados custos inerentes à manutenção de uma velha e exigente “senhora”, como a Quinta da Bacalhôa, ditaram a sua venda. Hoje pertence à Fundação Berardo e acolhe um museu onde se resume a sua história e são exibidas peças de arte de várias proveniências.
À margem
A Quinta da Bacalhôa teve, desde 1427, pelo menos 40 proprietários, descendentes de 15 ramos familiares diferentes. Três mulheres deixaram o seu nome associado de forma marcante ao espaço. A primeira foi D. Brites, neta de D. João I e mãe do que viria a ser D. Manuel I, mulher extraordinária que, entre tantos outros feitos, deu início à construção do palácio, já com especial profusão de azulejos. Dando um salto sobre outro proprietário importante, Afonso Brás de Albuquerque, temos Maria de Mendonça e Albuquerque, que herdou a quinta por morte do marido, conhecido como “o bacalhau” e a quem o povo tratava por “bacalhôa”, batizando assim a sua propriedade. Já no século XX, como vimos, Orlena Scoville dá ao espaço uma nova vida, reabilitando-o. Como reconhecimento deste trabalho, a americana foi, em 1947, homenageada pelo Estado Português, que a fez Dama da Ordem Militar de Santiago de Espada. Curiosamente, o palácio e a quinta pertencem atualmente a outro condecorado: José (Joe) Berardo, agraciado uma vez em França (Ordem da Legião de Honra) e duas vezes em Portugal (Comendador e Gran Cruz da Ordem do Infante D. Henrique).
Já agora, o filho de Orlena, Herbert Scoville Jr, também foi diversas vezes homenageado, havendo até uma bolsa de estudo com o seu nome, destinada a formar jovens para serem os políticos do futuro. Depois de exercer altos cargos governamentais, nomeadamente na CIA, como especialista em armamento, Herbert dedicou o resto da sua vida ao ativismo pelo controlo das armas nucleares.
Mas isso é outra história…
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*Manuel Joaquim Norte Júnior (1878-1962) foi um dos mais conhecidos e ativos arquitetos portugueses do início do século XX, autor de edifício emblemáticos e várias vezes vencedor do Prémio Valmor e Municipal de Arquitetura.
**João Miguel dos Santos Simões (1907-1972) sumidade no estudo do azulejo português, esteve na origem do Museu Nacional do Azulejo.
***Incluídos na monografia de Joaquim Rasteiro sobre o palácio e quinta da Bacalhoa e a sua relevância para a renascença em Portugal.
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Nota: as imagens com Martha Sharp e crianças salvas são em Portugal, mas não estão identificadas como tendo sido captadas na Quinta da Bacalhôa.
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Fontes
Informação obtida a partir da exposição patente no Palácio da Bacalhôa. Marcação de visitas disponível aqui: Palácio da Bacalhôa (bacalhoa.pt)
Resumo histórico fornecido pela Bacalhôa Vinhos de Portugal, que muito agradeço.
Palácio e Quinta da Bacalhôa – Inícios da Renascença – Monographia Histórico-Artística, de Joaquim Rasteiro; ilustrações de A. Branc; Imprensa Nacional; Lisboa – 1895.
Direção-Geral do Património Cultural
www.monumentos.gov.pt
The New York Times
9 ago 1967
American Friends Service Comittee
1943 Benefit Concert for Starving Children at NY MET_0.pdf (afsc.org)
A Connecticut Estate With a Sunken Garden and Secret Hideaway - WSJ
Orlena Zabriskie - Registos históricos e árvores de família - MyHeritage
Orlena Scoville - Ancestry.com
American School For the Deaf
History American School for the Deaf (asd-1817.org)
RTP – Arquivos
O Jardim Desapareceu – Pt. I – RTP Arquivos
Brown University Library Catalog
Martha and Waitstill Sharp Collection
https://library.brown.edu/
Martha and Waitstill Sharp Collection, ca. 1905-2005
United States Holocaust Memorial Museum
Martha and Waitstill Sharp with Their Children | Facing History and Ourselves
Arquivo Nacional Torre do Tombo
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)
Assembleia Distrital de Lisboa
Estatística – 1946 – volume II (Serviços de Assistência – Centros de Assistência Social)
PT/TT/ASDL-02JPE/I/288/00005
Empresa Pública Jornal “O Século” – Serviço de Fotografia
PT/TT/EPJS/SF/001-001/0077/3152O
Brasões da Sala de Sintra, de Alselmo Braamcamp Freire; 2ª edição, Livro segundo; Imprensa da Universidade de Coimbra; 1927. Disponível em:
The Herbert Scoville Jr. Peace Fellowship
Ordens Honoríficas Portuguesas
Museu do Azulejo
Câmara Municipal de Lisboa – Urbanismo – Prémio Valmor
Arquivo Municipal de Lisboa
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/
António Passaporte
PT/AMLSB/PAS/000339
PT/AMLSB/PAS/000341
Artur Pastor
PT/AMLSB/ART/001559
Wikipedia
Manuel Joaquim Norte Júnior – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Joe Berardo – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)