A Patti endoideceu Lisboa
Valeu de tudo para conseguir ouvir a magistral cantora: tentaram aliciar o seu agente com condecorações reais e “desviá-la” para outra sala de espetáculos. As atuações estiveram a abarrotar, mas as senhoras da alta sociedade amuaram com a artista.
A primavera de 1886 foi dominada por um único assunto: a muito aguardada, desejada e sempre adiada apresentação de Adelina Patti, na época, grande estrela do canto lírico e, até hoje, uma das maiores artistas de ópera que o mundo já conheceu. Os caríssimos bilhetes esgotaram em apenas 48 horas e a excitação era geral, mas a permanência da Patti no nosso País foi marcada também por um conjunto de situações caricatas, bem ilustrativas do provincianismo desta terra e do impacto da cantora, que todos queriam ver.
A viagem - que ainda foi protelada devido à cólera que grassava na Europa e aterrorizava a cantora - foi conseguida pelo enorme arrojo do então empresário do Real Teatro de São Carlos, António de Campos Valdez, que concretizou o que todos tinham prometido.
Quando se confirmou a vinda, foi "uma doidice, um delírio, uma nevrose".
Ouvir a artista era um privilégio apenas destinado a muito poucos, pois se a opera era já um espetáculo de elite, a vinda de uma vedeta de tal magnitude encarecia ainda mais essa atividade.
No entanto, até a tensão política foi esquecida, embora as más-línguas criticassem que se abrissem assim os cordões à bolsa para gastar em camarotes, enquanto se regateavam as despesas previstas para o iminente casamento do príncipe D. Carlos.
Patti chegou à estação de Santa Apolónia era manhã cedo do dia 25 de março. Hospedou-se no Grande Hotel de Lisboa, cujas escadarias haviam sido atapetadas para a ocasião e o proprietário em pessoa, João Matta – um dos primeiros chefes de cozinha portugueses – cozinhou com as próprias mãos os pitéus a servir.
A imprensa tudo escrutinou, desde as ementas, em francês - comme il faut - ao perfume que emanava dos luxuosos aposentos, onde foi instalada uma mesa de bilhar, exigência de Patti, que tinha naquele jogo o seu passatempo preferido.
Tal como uma outra Madonna, no século XXI, esta encantou-se com Lisboa, o céu, o rio, dando longos passeios pela nossa Capital e arredores.
O dia da apoteose foi 27 de março, com o teatro cheio até aos "cocurutos das galerias" para ouvir o Barbeiro de Sevilha.
Patti, uma mulher delicada, agigantou-se em palco mas, curiosamente, embora a atuação fosse arrebatadora desde o início, o público recebeu-a com uma certa indiferença, só explodindo em aplausos ao segundo ato.
É claro que os maldizentes – só encontrei um: Casimiro Dantas - não contestando a superioridade artística da estrela internacional, apressaram-se a dizer que esta, aos 43 anos, já não tinha o mesmo vigor da juventude.
Mas, eram outras as causas desta frieza da alta sociedade lisboeta, em contraste com o que aconteceu no resto da Europa, onde tudo o que era "mais aristocrático e ilustre" se rendeu "aos pés" da grande virtuosi e as damas se haviam desdobrado na encomenda de portentosas coroas de flores e na organização de convívios para a Patti, tratando-a como uma verdadeira rainha.
É que as senhoras portuguesas estavam amuadas com a artista.
Esta, ao contrário do que esperavam, preferia o recato do hotel ou pequenas receções, tendo até recusado confraternizar com a corte. Parecia preferir o contacto com o povo, aos frequentadores dos grandes salões.
Acresce que não acedeu a participar em qualquer récita de beneficência a convite destas madames, nem sequer as recebeu: uma afronta imperdoável, obviamente!
Na época, quem representava a cantora era J. Schuurman, que tinha o sonho de ser agraciado com o Hábito de Cristo, pelo então rei de Portugal. Ora, foi este agente que teve que enfrentar, quer o empresário do Coliseu, Freitas Brito, que pretendia desviar a cantora para a sua sala; quer as senhoras da sociedade. Oportunista, prometeu a aparição da Patti a quem lhe conseguisse a condecoração.
No final da época, Schuurman receberia o Hábito de Cristo das mãos de D. Luís I e a diva cantaria mais duas récitas no S. Carlos, mas não no Coliseu, nem para qualquer obra de beneficência. Tudo porque Campos Valdez, extremamente bem relacionado, conseguiu mexer os cordelinhos, desbloqueando a condecoração e superando as restantes "cunhas" e tentativas.
Só dois anos depois, de regresso a Lisboa, é que a Patti acedeu a cantar para a caridade.
A verdade é que, embora não totalmente tratada com justeza pelo público do high-life lisboeta, Adelina Patti agradou muitíssimo em terras lusas. Talvez não tivesse a mesma extensão, volume e facilidade de voz da juventude, mas era, ainda assim, "uma cantora assombrosa" e "sem rival" que, com a idade e experiência, ganhara em capacidade interpretativa, sentimento e versatilidade, que a fez assumir de forma magistral as protagonistas das composições que interpretou naquela longínqua época de 1885-86, no Real Teatro de São Carlos – O Barbeiro de Sevilha, Lucia, Traviata e Carmen.
À margem
Adelina Patti (1843-1919) foi a maior cantora da sua época, aplaudida em todos os grandes teatros e homenageada de múltiplas formas, mesmo em Portugal: o sabonete Patti, da Ach Brito, por exemplo, deve-lhe o nome. Era uma predestinada: filha de um tenor (Salvatore Patti) e de uma soprano (Caterina Barilli), começou a sua carreira ainda criança e prolongou-a até à velhice, algo extraordinário numa atividade de grande desgaste. Moveu-se sempre no meio artístico, mas na vida privada gravitou entre artistas e aristocratas. Casou em primeiras núpcias com o Marquês de Caux e o seu último marido foi o barão Rolf Cederstrom. Pelo meio viveu em concubinato com o cantor Ernesto Nicolini, que trouxe a Lisboa e com quem depois casou. Rezam as más-línguas que a sua relação era tempestuosa e não isenta de momentos de tensão. De resto, Nicolini – que também atuou no São Carlos – parece ter tido especial tendência para amores complicados. Conta-se que durante uma sua atuação em Lisboa, nos bastidores, pouco antes de entrar para o quarto ato da peça Lucrécia, a primeira mulher o descompôs de tal forma que o tenor perdeu as estribeiras e sacou do punhal que tinha à cintura e fazia parte dos adereços da personagem. Só não chegou a vias de facto, porque o guarda-roupa do teatro impediu o gesto tresloucado.
Mas isso é outra história...
................
Hoje ainda é possível ouvir a Patty. Encontrei várias gravações online, mas sugiro esta: https://wwAdelina Patti ~ Ah Non Credea Mirarti ~ ( La Sonnambula )w.youtube.com/watch?v=w2LY6YLHn7U
Para quem gosta de canto lírico, claro.
..........
Fontes
O Real Theatro de São Carlos – memórias 1883-1902, de Francisco da Fonseca Benevides, Lisboa, 1902, R. de Souza & Salles. Disponível em https://archive.org/details/gri_33125008466464/page/n12
Biblioteca Nacional de Portugal
www.purl.pt
Diário Illustrado
15º ano; nº4:610 – 24 fev. 1886
15º ano; nº4:613 – 27 fev. 1886
15º ano; nº4:640 – 27 mar. 1886
14º ano; nº4:493 – 30 out. 1885
17º ano; nº5:356 – 18 jan. 1888
17º ano; nº5:356 – 8 mar. 1888
16º ano; nº5:307 – 20 dez. 1887
18º ano; nº5:731 – 22 mar. 1889
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
A Illustração Portugueza – Revista Literária e Artística
2º ano; nº37 - 29 mar. 1886
2º ano; nº38 - 5 abr. 1886
2ª série; nº12 – 14 mai. 1906
O Occidente – Revista illustrada de Portugal e do Estrangeiro
9º ano, vol. XIX; nº262 – 1 abr. 1886
9º ano, vol. XIX; nº264 – 21 abr. 1886
https://www.timeout.pt/porto/pt/compras/ach-brito-celebra-100-anos
Anedotas e episódios da vida de pessoas célebres, de Rodrigues, Lourenco, disponível em
https://archive.org/details/anedotaseepisd00rodruoft/page/172
Imagens
https://www.npg.org.uk/collections/search/portrait/mw04900/Adelina-Patti
https://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_Nacional_de_São_Carlos#/media/File:S._Carlos_em_1893.png
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Adelina_Patti_and_Giovanni_Mario_in_Faust_opera.jpg
https://www.britannica.com/biography/Adelina-Patti/media/446851/18765
http://www.ipernity.com/doc/289583/45489076
https://www.artlyriquefr.fr/personnages/Nicolini%20Ernesto.html