A PIDE e os presos políticos
Ao longo dos anos, milhares de pessoas foram presas ou perseguidas pela PIDE, a polícia política do Estado Novo. Perto de completar-se meio século sobre o 25 de abril, presta-se aqui homenagem a um pequeno punhado dos que sentiram na pele o seu poder opressor.
O Estado Novo era um regime repressivo. A PIDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado era um dos principais instrumentos dessa repressão, velando contra qualquer tipo de oposição ou a mínima ameaça à ordem e à moral públicas instituídas. Em Alcácer do Sal, a realidade não era diferente, tendo, ao longo dos anos, sido presas dezenas de pessoas suspeitas de atividades subversivas.
Em todo o País, desconhece-se exatamente quantos foram os presos por delito de opinião ou intervenção em atos considerados contrários ao regime. Uma quantidade indeterminada nunca foi presente a tribunal, mas “entre 1933 e 1945, foram julgados 13. 806 presos, a esmagadora maioria acusada de «crime político», no Tribunal Militar Especial (Lisboa)”, milhares de outros enfrentaram processos constituídos de forma sumária “sem direito a defesa ou a recurso”.
Alcácer do Sal é, portanto, uma gota no oceano no que toca à oposição ao Estado Novo e às lutas por melhores condições de trabalho, que redundaram na prisão. Falamos desta pequena vila alentejana apenas como exemplo, curioso, no entanto, pela diversidade dos “implicados”: operários, comerciantes, trabalhadores rurais, artífices, empregados de escritório…
Aqui, de entre os que enfrentaram este tipo de problema, alguns se destacam, não porque, como pessoas, tenham mais importância do que os outros, mas pelo impacto que as suas prisões tiveram na terra ou pela notoriedade que adquiriram depois. São os casos de Jorge Portugal Branco, Francisco Ferreira (conhecido como Chico da Cuf) e António de Jesus Paulo.
O Chico da Cuf - assim alcunhado por ter trabalhado na Companhia União Fabril, no Barreiro -, foi um conhecido militante comunista nascido em Alcácer do Sal, em 1911. Foi perseguido pela PIDE e preso, passando à clandestinidade em 1934. Exilou-se primeiro em Espanha e, depois, na União Soviética, onde viveu cerca de um quarto de século. Sobre essa experiência, escreveu um livro onde demonstra a sua desilusão em relação ao regime político que ali conheceu. A sua morte, em 1993, deu origem à aprovação de um voto de pesar na Assembleia da República, curiosamente, apresentado pelo PSD.
Mário Bispo Pessoa, que mais tarde faria vida em Alcácer do Sal, foi preso em 1938 e esteve em Peniche.
Já Jorge Portugal Branco é outro alcacerense que teve problemas com a PIDE. Este empregado de escritório, com mérito intelectual e literário, foi preso em 12 de março de 1942 e esteve quase um ano (dez meses) em Caxias, o que motivou que, em Alcácer do Sal, um grupo de amigos influentes e bem relacionados se tenha unido e escrito uma carta ao ministro do Interior, pedindo a sua libertação, o que acabou por acontecer já em janeiro de 1943. Foi indultado e restituído à liberdade, condicionalmente.
Tudo indica que a prisão de Jorge Portugal Branco tenha estado relacionada com o facto de pertencer à denominada Rede Shell, desmantelada nesta época.
Tratava-se de uma rede de espionagem criada pelas forças inglesas como forma de fazer passar informação em territórios europeus ocupados pelos alemães, durante a II Grande Guerra, o que esteve iminente, mas não chegaria a acontecer em Portugal. A rede serviria, precisamente, para tentar sabotar uma eventual invasão no nosso país, colocando bombas em estradas e pontes, por exemplo.
Já em 1965, foi preso o tratorista António de Jesus Paulo, acusado de atividades subversivas no concelho de Alcácer do Sal, onde havia nascido, em 1925. Para além do trabalho clandestino de divulgação de propaganda comunista, anos antes, em 1962, esteve envolvido nas lutas dos trabalhadores rurais por uma jornada de oito horas de trabalho, contestando um duro regime de sol a sol e reivindicando aumentos salariais. Esteve preso 14 meses, em Caxias e Peniche, e deixou memórias escritas.
Na Primavera desse ano sucederam-se greves e outras ações de luta, com momentos de tensão e violência com a GNR, nomeadamente na Herdade da Berlanja e em Palma, onde houve espancamento de trabalhadores e 26 – dos quais, duas mulheres - foram levados para interrogatório. Marcolino Bento e Jacinto Veríssimo ficaram tão maltratados, que foram deixados na herdade.
Refira-se que o difícil processo de reivindicação culminaria na conquista da almejada jornada de oito horas de labor, que a indústria e o comércio já haviam alcançado em 1919, mas só chegaria à agricultura em maio de 1962, em consequência da revolta demonstrada nos campos do Ribatejo e do Alentejo.
Outro detido nos anos 60 foi Arlindo de Passos – alfaiate que viria mais tarde a ser eleito presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal. Consta do seu processo que alegou ter muita pressa de ser libertado, para não desiludir os clientes, que esperavam ter fatos novos para a Feira de Outubro.
A Pide desconfiava que a sua alfaiataria era um espaço de conspiração e movimentações políticas. Foi ali que Idalécio Soares Felicíssimoo (de alcunha, O Furão), guarda-fios de profissão, foi buscar uma misteriosa caixa que afinal tinha detonadores de bombas, o que lhe custou quatro penosos anos de prisão, em Peniche. De todos, ao que foi possível apurar, foi aquele que esteve mais tempo encarcerado.
Paulo Cândido Pinto, Virgílio Sobral da Cruz, Custódio Lucas Antão, Joel Paulino da Barca, Joaquim Granja (conhecido como Joaquim Domingos) e Luís João Merca (o Luís Gata) e Manuel Luís Dimas também estiveram na mira da Pide neste período, detidos à sua ordem, para averiguações.
À margem
A PIDE havia sido criada em 1945, em substituição da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, fundada em 1933. Em 1969 assumiu a designação de Direção-Geral de Segurança, embora mantendo as suas funções. O organismo foi abolido apenas com a revolução de 25 de abril de 1974.
Manuel Macaísta Malheiros, igualmente natural de Alcácer do Sal e que depois viria a ter projeção profissional e política de âmbito nacional, fez parte da equipa de advogados que defendeu vários presos políticos por alegadas atividades subversivas. O próprio advogado, depois juiz, participou nas lutas estudantis dos anos 60 e tinha processo aberto em seu nome por esta polícia de má memória.
Poucos arriscariam, então, adivinhar que chegaria a ministro, muito menos que lhe caberia encerrar o cargo de Governador Civil do Distrito de Setúbal, já que foi o último a assumir o cargo antes da sua extinção.
Mas isso é outra história…
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O meu agradecimento a Maria Antónia Lázaro, que pesquisou no Arquivo da PIDE e do Jornal Avante, falou com as famílias de alguns dos presos e ainda disponibilizou bibliografia.
O meu agradecimento a Baltasar Flávio da Silva, pela documentação disponibilizada.
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Adaptado de texto da mesma autoria – Cristiana Vargas - publicado originalmente no jornal Voz do Sado em fevereiro de 2024, no âmbito dos 50 anos do 25 de abril.
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Fontes
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Fundo PIDE
Jorge Portugal Branco, PIDE-E-010-70-13893.
Mário Bispo Pessoa, PT-TT-PIDE-E-010-51-10085.
Arlindo da Conceição de Passos, PT/TT/PIDE/E/010/137/27398.
Vírgílio Sobral da Cruz, PT/TT/PIDE/E/010/137/27396.
Manuel Luís Dimas, PT/TT/PIDE/E/010/137/27393.
Paulo Cândido Pinto, PT/TT/PIDE/E/010/137/27399.
Custódio Lucas Antão, PT/TT/PIDE/E/010/137/27335.
Idalécio Soares Felicíssimo, PT/TT/PIDE/E/010/137/27334
Joel Paulino da Barca, PT/TT/PIDE/E/010/137/27367.
Joaquim Granja, PT/TT/PIDE/E/010/137/27397.
Luís João Merca, PT/TT/PIDE/E/010/137/27395.
António de Jesus Paulo, PT/TT/PIDE/E/010/137/27362
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Fundo Baltasar Flávio da Silva
Forte de Peniche, memória, resistência e luta, URAP- União de Resistentes Antifascistas Portugueses, 2017.
Ephemera – Biblioteca e Arquivo de José Pacheco Pereira
Francisco Ferreira, 25 anos na União Soviética, notas de exílio do “Chico da CUF”, Edições Afrodite, 1975.
José António Barreiros, Traição a Salazar, Oficina do Livro, Grupo LEYA, 2012.
Arquivo do jornal Avante!
Nº318 06.1962
Luís Farinha, Diretor do Museu do Aljube Resistência e Liberdade, As Prisões da PIDE. Disponível aqui: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/7829775.pdf
CAAD-CV-Manuel_Macaista_Malheiros.pdf