A surpresa de Alcácer
O tiroteio durou mais de cinco horas. Havia militares rebeldes nas ruas e em cima dos telhados, tentando conquistar o quartel das forças governamentais, que resistiam. É um vivo episódio da Guerra da Patuleia, que teve lugar na estratégica vila de Alcácer do Sal.
Catorze indivíduos muito maltratados, alguns dos quais moribundos, deram entrada no Hospital da Santa Casa da Misericórdia, corria o dia 8 de fevereiro de 1847. O acontecimento que deu origem ao misterioso grupo ficou conhecido como “Surpresa de Alcácer” e causou enorme polvorosa e temor entre as gentes da pacata vila alentejana, confrontadas com um tiroteio que demorou mais de cinco horas na zona alta daquela localidade, já então conhecida como “Açougues”.
As tropas revoltosas, comandadas por Joaquim Mendes Neutel, tinham chegado a Santa Susana (a cerca de 18 kms) na véspera. Mandaram recolher toda a população e deixaram piquetes ali e na ponte de Rio Mourinho, para que ninguém fosse avisar que o inimigo estava a caminho. Depois, avançaram durante a noite para Alcácer.
Em silêncio, os homens foram divididos em três grupos e distribuídos pelos pontos estratégicos da terra. O líder apressou-se a acorrer ao quartel onde sabia estar a força afeta ao Governo, mas nesse momento já haviam sido detetados por sentinelas dos opositores, que sobre eles dispararam.
Os movimentos dos invasores, no entanto, foram rápidos e apanharam de surpresa os militares aquartelados, comandados pelo Major Ilharco, que mal tiveram tempo de recolher-se entre quatro paredes e começaram a ripostar com “um vivíssimo fogo por todas as janelas”.
Os visitantes indesejados ocuparam “todas as embocaduras das ruas” e as casas próximas, carregando sobre o quartel, a partir das janelas e do telhado.
O tiroteio foi longo, sem que os cercados depusessem as armas, os atacantes desistissem ou conseguissem entrar. Por várias vezes, Neutel gritou a Ilharco que se rendesse, ameaçando incendiar as instalações. A rendição só surgiu quando Neutel pegou em “sete feixes de lenha e mandando-lhes lançar água-raz”, lhes pegou fogo para que ateasse ao edifício.
Perderam-se dois soldados da força rebelde, que teve o mesmo número de homens com ferimentos. As tropas afetas ao Estado contaram com 15 atingidos e 17 mortos imediatos. Foram alguns feridos de ambas as partes que acabaram no Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal.
Os perdedores que se salvaram rumaram como prisioneiros a Évora, num total de 126 praças e sete oficiais, entre os quais, o Major Bernardino António Ilharco.
As autoridades locais fugiram e todo o Alentejo – à exceção de Elvas, Estremoz e Setúbal, ficou então à mercê dos guerrilheiros “patuleias”, comandados pelo Conde de Mello, ali representado por Joaquim Mendes Neutel.
O contingente governamental derrotado em Alcácer era de grande importância para proteger a Capital a partir da Margem Sul do Tejo. Talvez por isso, os militares que mais se distinguiram neste combate foram condecorados com o 1º grau da Ordem da legião Nacional, criada pela Junta Provisória do Governo Supremo do Reino, que então governava parte do País, a partir do Porto.
Estávamos em plena guerra civil. Mal refeito das guerras entre liberais e absolutistas, Portugal enfrentava novo conflito generalizado, com as forças de D. Maria II a não conseguir controlar os tumultos populares que rebentavam no País inteiro e que logo foram apoiados e “cavalgados” pelas várias oposições – de miguelistas* a setembristas** - unidos numa estranha aliança de antigos inimigos. Entre 1846 e 1847 multiplicaram-se confrontos que só terminaram com intervenção estrangeira e a convenção de Gramido, em junho desse mesmo ano.
À margem
A guerra da Patuleia, nome pelo qual ficou conhecido este conflito que colocou do mesmo lado da barricada guerrilheiros e outros populares, ombro a ombro com militares e elementos da nobreza não satisfeitos com o rumo da política nacional, com frequentes mudanças de fação e movimentações de tropas, deverá o seu nome à expressão “pata ao léu”, já que muitos dos que engrossavam as hostes revoltosas eram pessoas do povo que andavam descalças. Entre os populares que, em todo o País, se sublevaram contra as políticas de D. Maria II e dos seus ministros houve alguns que se destacaram pela longevidade e capacidade de mobilização de tropas. O Alentejo era o território do Galamba (na imagem), ao qual inicialmente foi atribuído o ataque que ficou conhecido como a “Surpresa de Alcácer”. Este curioso e intrépido farmacêutico de Serpa, transformado em guerrilheiro, reunia as suas tropas nas margens do Sado e tanto lutava pela liberdade e a justiça, como assaltava propriedades para angariar cavalos e provisões para a causa.
Mas isso é outra história...
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*Partidários do absolutista pretendente ao trono, D. Miguel.
**Fação liberal mais à esquerda, defensores da soberania popular.
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Já aqui falei neste período bastante atribulado da história de Portugal
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Os meus agradecimentos a Baltasar Flávio da Silva, que me lançou o desafio de descobrir o que teria levado tantos feridos ao Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal, nesse recuado ano de 1847.
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As imagens são meramente ilustrativas, não correspoindendo ao combate relatado
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Fontes
Harvard College Library
Jornal O Espectro
Nº23, 13 fev 1847
Nº 27, 26 fev 1847
Disponível aqui:
https://books.google.pt/books?id=BpYDAAAAYAAJ&pg=PA7-IA1&lpg=PA7-IA1&dq=%228+de+fevereiro+de+1847%22+Alc%C3%A1cer&source=bl&ots=nEjZ0I_ARW&sig=ACfU3U0OD7LLGqxS32xVtXaVLwmXSHvNqQ&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwjfoeWnzMrrAhWGlxQKHd90Ag4Q6AEwA3oECAEQAQ#v=onepage&q=alcacer&f=false
The Library of the University of California – Los Angeles
Jornal O Progressista
Nº36, 15 fev. 1847
Nº52, 5 mar.1847
Disponível aqui:
https://books.google.pt/books?id=LmAvAQAAMAAJ&pg=RA3-PA45&lpg=RA3-PA45&dq=%228+de+fevereiro+de+1847%22+Alc%C3%A1cer&source=bl&ots=ovWoVmIRiH&sig=ACfU3U0ZVUxjwECAwthE05Hi4NGCud-XoA&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwjfoeWnzMrrAhWGlxQKHd90Ag4Q6AEwBHoECAIQAQ#v=onepage&q=%228%20de%20fevereiro%20de%201847%22%20Alc%C3%A1cer&f=false
Bodleian Library
Documentos históricos relativos aos últimos acontecimentos políticos de Portugal que não veem contemplados no livro azul, Typographia de Borges, Lisboa, 1848. Disponível aqui:
https://books.google.pt/books?id=R3MIAAAAQAAJ&pg=PA21&lpg=PA21&dq=%228+de+fevereiro+de+1847%22+Alc%C3%A1cer&source=bl&ots=XFOcGDul6h&sig=ACfU3U3rvzai3lYDSTb_V7Q_q0yuKITjCA&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwjfoeWnzMrrAhWGlxQKHd90Ag4Q6AEwBXoECAMQAQ#v=onepage&q=%228%20de%20fevereiro%20de%201847%22%20Alc%C3%A1cer&f=false
O Archeologo Português
Série 1, vol. 25
Medalhas e condecorações concedidas pela Junta do Porto em 1847, de Henrique de Campos Ferreira Lima.
Disponível aqui:
http://www.patrimoniocultural.gov.pt/pt/recursos/o-arqueologo-portugues/o-arqueologo-portugues/
Duas palavras ao author do esboço histórico de José Estevão ou Refutação da parte respetiva aos acontecimentos de Setúbal de 1846-1847 e outros que com aquelles tiveram relação, por João Carlos d’Almeida Carvalho; Typographia Universal, Lisboa, 1863. Disponível aqui:
http://catalogobib.parlamento.pt/ipac20/ipac.jsp?session=15YM5064A3555.320117&profile=bar&uri=link=3100027~!435590~!3100024~!3100022&aspect=basic_search&menu=search&ri=1&source=~!bar&term=Duas+palavras+ao+auctor+do+esbo%C3%A7o+historico+de+Jos%C3%A9+Estev%C3%A3o+ou+refuta%C3%A7%C3%A3o+da+parte+respectiva+aos+acontecimentos+de+Setubal+em+1846-1847%2C+e+a+outros%2C+que+com+aquelles+tiveram+rela%C3%A7%C3%A3o&index=ALTITLE
http://maltez.info/respublica/portugalpolitico/grupospoliticos/1846%20Patuleia.htm
http://adbja.dglab.gov.pt/3250-2/
http://pagus.pt/pagus/quem_ficha.aspx?idq=6361&idt=156&lang=PO&ti=
Imagens
https://proxy.europeana.eu/10501/bib_rnod_32921?viAntónio Manuel Soares Galambaew=http%3A%2F%2Fpurl.pt%2F6756%2Fservice%2Fmedia%2Fjpeg&disposition=inline&api_url=https%3A%2F%2Fapi.europeana.eu%2Fapi
http://iseelittletinpeople.blogspot.com/2016/02/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Patuleia