A terra mais doentia do País
Os pobres aguentavam como podiam os ares supostamente enfermiços desta vila à beira Sado. Os funcionários do Estado aqui colocados tentavam fugir a tal sorte e queixavam-se amargamente aos superiores.
A terra mais doentia do País. É nestes termos que, em meados do século XIX, um deputado da nação se refere a Alcácer do Sal, acusando o governo de castigar funcionários públicos "deportando-os" para uma comarca com estas características tão negativas. A má fama destes ares, associada à existência de extensos terrenos pantanosos e à cultura do arroz, manteve-se pelo menos até aos anos 30 do século XX e, justamente, porque o sezonismo chegou a ser principal causa de morte. Só que o problema não estava nos ares, mas nas picadas dos mosquitos que, por aqui, tinham propagado a malária a 95 em cada centena de alcacerenses.
Os parlamentares argumentavam que a esperança média de vida nas terras junto aos arrozais, como Alcácer, mas também Santiago do Cacém e Alhos Vedros (concelho da Moita, na margem sul do Tejo) era de pouco mais que 20 anos (!), metade da média nacional de então e que nem era preciso ser médico para ver que estas gentes andavam doentes, pois apresentavam a fraqueza pintada nos olhos, pele de cor terrosa e abdomen dilatado, assemelhando-se aos "peixes sapos".
A população "comum" suportava as agruras de uma vida humilde e exposta a estes perigos, até porque não conhecia outra realidade.
Os mais afortunados passavam grandes temporadas fora da terra*, em especial nos meses de maior calor.
Depois havia os que tentavam "fugir" de tal sorte. Neste grupo enquadram-se os funcionários públicos destacados para Alcácer do Sal.
De facto, os livros de registo da correspondência enviada ao Procurador da República mas também ao juiz presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, estão cheios de queixas quanto ao clima que se vivia nesta localidade à beira Sado.
Os diversos delegados do Ministério Público que por aqui passaram diziam que o ambiente era enfermiço, afetando sobremaneira o bem-estar e o humor, especialmente dos nortenhos – habituados a atmosferas mais temperadas - e igualmente dos juízes e dos próprios funcionários, que viam a “saúde gravemente prejudicada por longa permanência nesta terra", onde o paludismo continuava "a perseguir incansavelmente toda a população”, lamenta-se o juiz Alberto Nogueira de Lemos, que aqui esteve colocado nos anos 30.
Esta realidade, a somar ao facto de esta ser, no início do século XX, apenas uma comarca de 3ª classe, não terá sido alheia à ansiedade com que os magistrados aguardavam a promoção que lhes permitia passar a uma colocação de superior categoria. Mesmo durante os períodos em que se encontravam em Alcácer do Sal, eram frequentes as licenças solicitadas, quer para férias, quer por doença, mas invariavelmente passadas longe deste concelho.
Os juízes chegavam a estar ausentes anos a fio e adoeciam “devido à insalubridade do clima da região” e à dificuldade de tarefas como a avaliação de propriedades, frequentemente “muito distantes da sede do concelho”, o que os fazia percorrer grandes distâncias em más condições. “Os caminhos e meios de transporte são péssimos e mesmo assim nem sempre há”, queixava-se um representante do Estado.
De resto, entre 1922 e 1935, por esta comarca passaram pelo menos 13 delegados do Procurador da República que, como se compreende, não chegaram a “aquecer o lugar”. Quem efetivamente desempenhou funções foi o sub-delegado, Joaquim António Correia Júnior, que se manteve no cargo sensivelmente durante este período.
Contrariando esta aversão, no entanto, muitos foram os que, tendo vindo parar a Alcácer por acaso, por aqui ficaram, criaram raízes e família.
À Margem
O receio que os ares de Alcácer despertava nos forasteiros não deixava de fora nenhuma classe social. Maria da Conceição da Costa Bico, hoje com 92 anos de idade, conta um episódio que mostra bem essa transversalidade. Nos anos 20 do século passado foi colocado em Alcácer do Sal o padre António Fialho Prego Calabote (na imagem). Parece que os amigos não se conformaram com esta deslocação, receando pela saúde do pároco, devido à má reputação dos ares da terra. O padre não esteve por meias medidas e, apostado em provar que em Alcácer do Sal também se podia ser saudável, chamou à igreja a paroquiana com aspeto mais sadio de que se lembrou, precisamente a menina Conceição, roliça, corada e sã menina, para demonstrar que também as havia por aqui.
Prego Calabote, de resto, permaneceu em Alcácer por muitos anos e também parece ter-se dado bem com estes ares, sendo conhecido pela grande robustez da sua pessoa. Tão corpulento se tornou, aliás, que, quando morreu, em 1944, o seu caixão era tão largo que não pôde sair pela porta, tendo sido necessário fazê-lo transportar pela janela.
Mas isso é outra história...
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*Já aqui falei a vilegiatura marítima que os alcacerenses abastados faziam, especialmente em Setúbal.
Fontes
Biblioteca Municipal de Alcácer do Sal
“A malária no Vale do Sado – perspetiva histórica”, Memórias do Instituto de Malariologia de Águas de Moura, de Fernando Borges - Comunicações do simposium satélite, Palmela, 29 novembro 2001 a 7 abril 2002
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
Fundo Comarca - Correspondência/correio
Sub Fundo Delegação do Procurador-Régio/da República – Correspondência
Debates parlamentares
http://debates.parlamento.pt/catalogo/mc
Imagens
Arquivo Municipal de Alcácer do Sal
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