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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A tormentosa viagem inaugural do charuto flutuante

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Três meses, foi o que demorou o primeiro submarino da Marinha Portuguesa a fazer o percurso entre Itália, onde fora construído – e o cais das Colunas, em Lisboa. Foi um caminho tempestuoso, feito de avanços e recuos, avarias e contratempos, só superados pela valentia e capacidade de improviso da tripulação, que mal conhecia o navio.

 

“Prolongada odisseia”, difícil, atribulada e tormentosa. Foi desta forma expressiva que a imprensa da época classificou a viagem que o primeiro submarino da Marinha Portuguesa empreendeu entre o estaleiro italiano onde foi construído e a sua “casa”, em Lisboa. O “charuto flutuante”, como lhe chamou um jornalista, demorou três meses a fazer o trajeto, a uma velocidade no mínimo pachorrenta, tornada ainda mais vagarosa pela invulgar agitação marítima e pelas sucessivas avarias, que obrigaram a frequentes e irritantes paragens nos portos encontrados pelo caminho.

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Mas, não foi só a expedição inaugural que primou pela lentidão: a entrada do Espadarte no Tejo, ao quinto dia de agosto de 1913, foi o culminar de um processo com seis anos, iniciado na Monarquia e só concluído na jovem República. A autorização para a compra foi dada em 1907, ainda reinava D. Carlos; a encomenda foi formalizada no reinado do seu filho, D. Manuel II, cinco meses antes do sistema político mudar, pelo então ministro João de Azevedo Coutinho, mas a entrega do submersível só se faria em 1913, um ano antes de eclodir a Primeira Grande Guerra, onde  participou, mas que ditaria o seu irremediável obsoletismo, tantos que foram os avanços tecnológicos deste tipo de arma durante aquele conflito.

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Foi uma Lisboa inquieta* – embora momentaneamente entorpecida pelo calor estival - que recebeu o novíssimo submarino. A curiosidade popular virou-se para aquele “minúsculo barquito” – de 45 metros de comprimento! - qual “cetáceo com o dorso a aflorar à superfície encrespada da água” em frente ao cais das Colunas, e para a grande aventura que foi traze-lo a terras lusas.
Tal façanha exacerbou o espírito de corajoso marinheiro que, no fundo, no fundo, estará escondido e frequentemente envergonhado no peito de cada português, herdeiro desses bravos que “deram novos mundos ao mundo”.


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A tripulação, de 19 pessoas, foi aclamada como heroica, com especial ênfase no seu comandante, o 1º tenente Joaquim de Almeida Henriques (na 5ª imagem, com a família).

Tinham superado todas as dificuldades motivadas pelo insistente enguiço que afetou os motores diesel que o Espadarte usava para se movimentar à superfície e que o fizeram ter de aportar tantas vezes.

O pára-arranca começou logo à saída de Spezia, com regresso à “casa-mãe” ainda a viagem mal tinha começado. Seguiram-se interrupções à marcha em Marselha, Barcelona, Alicante, Gibraltar, Valencia, Gave, Lagos e Sagres. Aparentemente, os motores eram tão modernos e inovadores que, em todos estes locais, não havia peças ou mecânicos capazes de debelar as avarias, tendo sido preciso deslocar técnicos da empresa construtora, a Fiat San-Giorgio, para resolver tão intrincados enigmas.

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Curioso é que, mesmo com este estado de coisas, que terá provocado “fadigas inconcebíveis para a tripulação”, o otimista comandante dissesse que a construção do barco era “cuidadosíssima e do mais perfeito” que se conhecia até à altura, com “todos os mecanismos” a funcionar “admiravelmente”, até os problemáticos motores de combustão, substituídas que foram as peças partidas ou avariadas, claro!

Joaquim de Almeida Henriques, aliás, mostrou bem a sua fibra e intrepidez, ao recusar um mecânico italiano permanentemente a bordo ou a escolta de outro navio.


O Espadarte, que a partir de 1918 – porque as depauperadas finanças públicas não o permitiram antes - passou a ter como companhia mais três submarinos – Hidra, Foca e Golfinho – tinha dois tubos lança torpedos, antena de telegrafia sem fios e dois periscópios.

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As estratégicas missões defensivas que lhe estavam destinadas numa guerra acabaram por não se verificar, porque os bloqueios de portos não se fizeram à superfície e os ataques foram demasiadamente rápidos para poderem ser evitados por este tipo de embarcação, tão vagaroso. Até aos anos 30, quando foi substituído, o grosso da sua atividade seria na barra do Tejo, ainda assim quase sempre à superfície.


À margem

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A aquisição de meios tão dispendiosos e sofisticados como os submarinos por parte de um país pequeno e pobre como Portugal é uma decisão condenada à polémica, quer estejamos em 1910 ou em 2004, ano em que foram comprados os mais recentes. Tempos houve, no entanto, em que se tentou construir este tipo de navio em Portugal. João Fontes Pereira de Melo e Júlio Valente da Cruz foram dois militares portugueses que, no final do século XIX, tiveram o sonho de desenvolver submarinos para uso militar, numa altura em que, noutros países, este tipo de experiências se concretizava e em Portugal se reagia ainda ao ultimato Inglês, que fez repensar as antigas relações de aliança com aquele país e a nossa vulnerabilidade militar. Apesar do interesse manifestado pelo Estado nas invenções de João Fontes Pereira de Melo e de Júlio Valente da Cruz, que aprofundaram durante anos as suas ideias e chegaram a mandar construir protótipos dos seus torpedeiros submarinos, com bons resultados efetivos, os decisores acabaram por optar por tecnologia estrangeira. Isto porque não confiaram suficientemente nos progressos destes dois militares, ou porque, como lamentavelmente acontece com frequência, outros interesses falaram mais alto quando chegou a hora de fazer a encomenda.
Mas isso é outra história…

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*Pode saber mais sobre este período de “ressaca” da implantação da República, marcado pela descoberta diária de conspirações, complots, explosões e atentados, aqui: Um prédio de conspiradores.


*Pode conhecer com maior pormenor as invenções de João Fontes Pereira de Melo e Júlio Valente da Cruz na página 6 desta revista da Armada.

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Fontes
https://www.marinha.pt/pt/servicos/Paginas/revista-armada.aspx
Percursores dos submarinos em Portugal, de F. David e Silva (CALM) Revista da Armada – Publicação Oficial da Marinha; nº 473, ano XLIII – abril 2013
Cem a nos de submarinos, cem anos de excelência, de Narciso Augusto do Carmo Duro (VALM) - Revista da Armada – Publicação Oficial da Marinha; nº 473, ano XLIII – abril 2013

http://www.marinha.pt/centenariosubmarinos/index.html

Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Jornal A Capital
4, 5 e 6 agosto 1913
Illustração Portuguesa
Nº348, 21 outubro 1912
Nº390, 11 agosto 1913
Occidente – Revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro
36º ano; XXXVI volume; nº 1246 – 10 agosto 1913



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