A tragédia camiliana de Francisca e José Augusto
Um triângulo amoroso. O rapto escandaloso de uma jovem, equívocos fatais, ciúmes avassaladores, um casamento não consumado e duas mortes trágicas. Um coração conservado em formol e um corpo desaparecido. Estão reunidos os ingredientes para um romance de Camilo Castelo Branco, em que a realidade é ainda mais intrigante do que a ficção.
Há 170 anos, na região do Porto, nascia uma das histórias de amor mais rocambolescas e funestas que este país já conheceu. O que poderia ter sido apenas mais um casamento burguês falhado, transformou-se num enredo pleno de mistério e pormenores escabrosos, que apaixonou gerações, alimentou escritores e cineastas. O trio amoroso composto por Francisca Owen (na imagem), Camilo Castelo Branco e José Augusto Pinto de Magalhães ainda hoje tem contornos por decifrar e segredos que, provavelmente, nunca serão revelados.
Entre o verão de 1849 e setembro de 1854, desenrolou-se esta trama onde é difícil perceber o que aconteceu de facto e o que apenas resultou da imaginação e da manipulação dos intervenientes.
Camilo e o fidalgote de província José Augusto conheceram Maria e Francisca Owen quando se deslocaram à romaria ao Senhor da Pedra, em Miramar.
De passagem por Vilar do Paraíso, vislumbraram as belas irmãs que exerceram um fascínio imediato sobre os dois homens (na imagem, Vila Alice, a casa onde viviam).
Não nos podemos esquecer que estávamos em pleno romantismo. Era um tempo de arrebatamentos, de amores impossíveis. Quanto mais proibidos e difíceis, mais se saciavam as almas torturadas e os corações de sensibilidades exacerbadas. A vida, para pulsar nas veias, deveria copiar os grandes romances escritos, trágicos e inesquecíveis. Sempre com os mais fatídicos resultados para os envolvidos.
Este era o sentir destes jovens cavalheiros – Camilo (na imagem), de resto, teria uma existência repleta de paixões tremendas, que soberbamente lhe inspiraram a escrita. José Augusto (na imagem seguinte), por seu turno, ansiava por entusiasmos de semelhante impacto, mascarando o tédio da sua vida vazia e o pouco talento da sua pena.
Maria era mais bela, sensual e terrena. José Augusto começou por se encantar com ela. Francisca (Fanny) era reservada, melancolicamente intrigante, etérea. Agradou sobremaneira a Camilo.
Os amigos de ocasião tornaram-se visita da casa, mas as dinâmicas rapidamente se alteraram. Maria passou a carta fora do baralho, enquanto Camilo e José Augusto ficaram cativos da atenção de Fanny, cujas preferências são difíceis de perceber.
Certo é que, bem ao gosto de época, José Augusto rejeita Maria, de quem já estava praticamente noivo, e rapta a irmã, numa atribulada noite de julho de 1853.
Este era um expediente então muito usado para obviar aos amores contrariados, mas constituía uma mácula irreparável para a mulher, enlameando a honra da família e manchando de escândalo a sua reputação.
Parte da tragédia poderia remediar-se com um casamento, o que aconteceu, por procuração, a 5 de setembro de 1853, embora os Owen nunca tivessem aceitado o enlace.
A vivência do novo casal, na Quinta do Lodeiro (na imagem), em Santa Cruz do Douro (Baião), morada de família do noivo, é um enigma, mas parece claro que eram absolutamente infelizes.
É que, um conjunto de cartas chegado ao conhecimento de José Augusto, planta na sua mente dúvidas sobre a honestidade da mulher.
A partir daqui ambos mergulham numa existência tortuosa e amargurada. Ele, possuído de ciúmes insanos e avassaladores. Ela mortificada pela indiferença dele, provavelmente desconhecendo a sua causa e inocente de qualquer deslize.
Vivem praticamente isolados, uma teia de mal-entendidos e suspeitas infundadas, mas fatais.
Fanny rapidamente adoeceu. Definhou irremediavelmente até morrer tísica, em 3 de agosto 1854, menos de um ano após o casamento.
José Augusto sucumbiu à culpa e as suas ações após a viuvez mostram um desequilíbrio que lhe cavaria o abismo.
Manda embalsamar o corpo de desventurada e extrair-lhe o coração, que coloca numa urna com formol, talvez para finalmente o possuir. Deposita a jovem num caixão de vidro - qual Branca de Neve - e fecha-se na capela, com um padre, durante uma semana.
Manifesta-se destroçado, morto por dentro, desvairado.
Depois, doente, ruma a Lisboa, e acaba por se suicidar, tomando veneno. Por macabra coincidência – ou não - morre na mesma hospedaria onde, inusitadamente, se encontrava Hugo Owen, que o considerava o carrasco da irmã.
À distância, Camilo sofre também e o que escreveu sobre Fanny e José Augusto em várias obras - misto de verdade e de ficção - contribuiu sobremaneira para adensar o mistério e mostrar que também nunca ultrapassou o caso em que foi personagem e autor.
Segundo afirmou, a autópsia terá demonstrado que o casamento nunca foi consumado e que a trágica jovem, de 24 anos, expirou pura e intocada.
José Augusto foi sepultado anonimamente no Cemitério do Alto de São João. O corpo de Fanny terá sido transferido para um jazigo familiar sem paradeiro certo e o coração perdeu-se para sempre. Ficou o mito.
À margem
São bem conhecidas as aventuras e desventuras amorosas de Camilo Castelo Branco, ele próprio nascido de uma relação clandestina. Casou aos 16 anos, mas teve numerosos e tumultuosos casos extraconjugais, o mais conhecido dos quais, a ligação com a também casada Ana Plácido, que acaba por raptar, uma ousadia que redundou na prisão do casal, após andar a monte.
Mas, não foi a única. Entre as paixões de Camilo estão a freira Isabel Cândida, Patrícia Emília de Barros, uma bailarina espanhola e muitas outras, embora da sua vida também faça parte uma errática passagem pelo seminário. Viveu anos de boémia, jogo e antros de reputação duvidosa, mas sempre escrevendo para sobreviver, o que o tornou um dos escritores mais prolíficos do seu tempo.
Colaborando com diversos jornais e outras publicações, envolveu-se igualmente em múltiplas polémicas, políticas e pessoais, estando várias vezes em maus-lençóis devido às suas opiniões e a inconfidências publicadas.
Tal como José Augusto Pinto de Magalhães, mas muitos anos depois, quase cego em resultado da sífilis que o consumia, matou-se. Disparou um tiro de revolver contra a têmpora, pondo fim à vida, aos 65 anos.
Quando esteve na cadeia, para além de ter escrito muito e de ter sido visitado pelo jovem e ponderado rei D. Pedro V - a quem as peripécias amorosas do escritor deviam parecer totalmente descabidas - Camilo conheceu o célebre salteador Zé do Telhado, famoso por, alegadamente, roubar aos ricos para dar aos pobres.
Mas isso é outra história…
Fontes
Visconde de Vila-Moura, Fanny Owen e Camilo, Edições do Tâmega, 1992.
Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen, Porto, Público Comunicação Social, SA, 2002.
Rute Silva Correia, A Verdade é o Que Camilo Deixou Escrito, Lisboa, Universidade de Lisboa, in Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais nº7, p252-262, 2010.
Arquivo Distrital do Porto
Registos paroquiais, casamentos, Porto, Santo Ildefonso, PT-ADPRT-PRQ-PPRT12-002-0030_m0188
Imagens
Canva: um Kit de Criação Visual para todos
Camilo Castelo Branco – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Visconde de Vila-Moura, Fanny Owen e Camilo, Edições do Tâmega, 1992.
Casa de Camilo: Image (wordpress.com)
Casa de Camilo: Image (wordpress.com)
As mulheres do concelho de Vila Nova de Gaia ao Longo do Século XX, Mostra Fotográfica, Arquivo Municipal Sophia de Mello Breyner, março 2011.
Arquivo Municipal do Porto, Camilo Castelo Branco e o Seminário do Porto, em 1852, PT-CMP-AM/PUB/CMPRT/DSCS-GHC/1689-1694/PUB.63-F.P:CMP:9:156