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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

A trágica poetisa e o poderoso republicano

 

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Rita apareceu morta na propriedade do homem mais importante da terra que, embora viúvo, tinha sido pai poucos meses antes... Imagina-se o choque e o falatório naquele longínquo ano de 1883.

 

Numa época em que às mulheres estava reservado o papel de castas e submissas criaturas, Rita saiu do lar paterno, ganhou dois processos em tribunal, investiu numa educação esmerada e publicou um livro. Depois, decidiu morrer, mas ligou para sempre o seu desaparecimento ao nome do homem mais poderoso da terra.

Rita Pereira de Mattos e José Jacinto Nunes viveram em Grândola na segunda metade do século XIX, a escassas centenas de metros um do outro. Na primavera de 1883, a jovem apareceu morta nas traseiras da casa do conhecido político, onde hoje estão instalados os Paços do Concelho.

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O caso deve ter chocado a pacata vila e o povo não terá tardado a tecer as suas interrogações. Teriam uma ligação amorosa? Estaria Rita enamorado do homem mais importante da vila? Era louca e suicidara-se?

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A notoriedade de José Jacinto Nunes contribuiu, muito provavelmente, para que a tragédia fosse alvo de todas as especulações, na mesma medida em que, imagina-se, o seu poder, seria determinante para que todos dessem os seus palpites à boca pequena e nada “transpirasse” para os jornais*.

José Jacinto Nunes viveria ainda muitos anos (1839 – 1931). Teve uma carreira notável, longa, cheia de sucessos e digna de enorme admiração.

A existência de Rita foi igualmente invulgar, mas plena de desgostos. Só não sabemos se o amor pelo distinto político foi a razão de ter sido tão fatalmente curta.

Rita Pereira de Mattos foi uma poetiza de mérito, apesar de ter morrido aos 30 anos.

 

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Amargura, tristeza e desespero são sentimentos marcantes nas palavras que escreveu, espelho da sua vida, malgrado ter nascido em berço de alguma abastança, numa família de médios proprietários rurais de Abela, Santiago do Cacém (na imagem), a 13 de setembro de 1852.

 

 

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Tendo sido a única sobrevivente de um conjunto de pelo menos oito filhos, imagina-se o desvelo e a expetativa com que foi criada pelos pais.

Mas, o destino tem destas coisas.

Bem cedo, Rita inicia o seu calvário, primeiro com a morte de uma irmã com quem mais privou, depois, em 1870, com o falecimento da mãe.

Passados sete anos, poucos meses após ter contraído segundas núpcias, o pai interpõe um processo de interdição por prodigalidade. Quer provar que a filha “se acha em estado anormal das suas faculdades mentais e incapaz de reger a sua pessoa e bens”.

Sabe-se bem a relativa facilidade com que, naqueles tempos, uma mulher podia ser considerada insana, simplesmente por não se ajustar à conduta dela esperada. No caso de Rita, embora as testemunhas atestassem “acessos de loucura” passados, a apreciação final foi que estava “em perfeito juízo”, demonstrando até “prudência e sensatez não muito vulgares em pessoas do seu sexo e da sua idade”.

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Rita entendia que sentir tristeza era “justíssimo”. Afinal, vivia “isolada do mundo”, “sem mãe, sem irmãos, sem família”, refugiando-se no trabalho e no estudo, já que se encontrava no fim do processo de educação a que se havia proposto. Efetivamente, como demonstra a poesia que deixou, a sua instrução terá ultrapassado em muito o expectável para alguém da sua condição.

Em 1880, o pai morre e ignora-a no testamento. Após nova batalha legal, acaba por conseguir herdar o que lhe cabia por direito.

 

Não deve ter sido nada fácil, como mulher jovem e “desamparada”, impor-se, viver sozinha ou acompanhada apenas por uma criada, como se sabe que acontecia no final da sua vida.

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Mas, em 1882, a publicação da sua obra – Prelúdios - poderá ter dado à poetisa a sensação de dever cumprido, porque, logo em janeiro do ano seguinte, começa a preparar a sua morte.

No testamento que então mandou lavrar, para além de dispor dos seus bens, traça claras diretrizes sobre a organização do enterro e como deveria ser amortalhada. Demonstrando a importância que atribui ao trabalho, determina regras específicas para a reedição da sua poesia.

Exatamente três meses depois, a 4 de abril, esgueirou-se por uma janela e desapareceu na noite.

casa de jose jacinto nunes atuais paços do concel

O alerta foi dado pela criada, às duas horas da madrugada, mas já o dia raiava quando Rita foi encontrada, sem vida, afogada no poço da propriedade de Jacinto Nunes. Tudo em redor indicava que a jovem “espontaneamente” ali se lançara, provavelmente em resultado da “grande exaltação nervosa” de que padecia nos últimos tempos e que se agravara nos meses anteriores a este trágico desfecho.

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Talvez nunca saibamos se estava louca, se sofria por amor ou sequer se José Jacinto Nunes alguma vez para ela olhou.

O que sabemos é que, precisamente uma semana antes de ter firmado o testamento onde preparava legalmente a sua morte, nasceu em Grândola uma menina, fruto da relação deste importante político e proprietário com uma jovem de 24 anos que a hipocrisia então reinante deu como incógnita no registo de batismo da filha.

Embora as suas palavras mostrem que a angústia vinha de longe, terá sido esta a gota de água que, aos 30 anos, fez transbordar o copo do sofrimento de Rita? 

A vida é maga,

sorri, afaga

de gozo embriaga

tem crenças mil;

mas quem podera,

na primavera,

morrer co'a hera do lindo abril

 

Nem um momento

d'abatimento

cruel tormento

sofrer aqui!

Viver sem norte

é mais que a morte, 

é dor mais forte

que já senti (...)

Rita Pereira de Mattos

1876

 

À margem

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José Jacinto Nunes nasceu em Pedrogão Grande. Foi em Coimbra, onde cursou Direito, que cresceu o seu pensamento político liberal e democrático, mas seria em Grândola, onde casou e fez vida, que se tornaria verdadeiramente importante e poderoso.  Ali chegado com apenas 27 anos, nomeado administrador do concelho, em pouco tempo casaria com uma jovem de uma das melhores famílias locais.

Foi presidente daquele município alentejano cerca de meio século; regionalista e republicano convicto desde a primeira hora, foi também deputado e senador, teve obra publicada, mas apesar da sua importância nacional, o poder de Lisboa não o parecia aliciar, pelo que dedicou a maior parte da sua atividade a defender Grândola e a reivindicar obras e conquistas relevantes para a terra que o adotou.

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Casado com Maria da Natividade Paes e Vasconcelos (na imagem), teve cinco descendentes, três mulheres e dois homens, sendo Jorge de Vasconcelos Nunes o que mais se destacaria, pois seguiu as pisadas do pai.

 

 

 

 

 

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Aos 43 anos, viúvo, com os filhos ainda pequenos, envolve-se com Maria Lúcia Feio, que trabalharia em sua casa. Do relacionamento, nasce, em dezembro de 1882, Maria Lúcia Nunes (na imagem, com os quatro filhos), que reconheceria como filha, com cujos descendentes manteria contacto, mas que, no final, não seria mencionada no seu testamento.

José Jacinto Nunes era já então uma figura nacional.

Com a luta política ao rubro, participava em comícios, congressos e chegaria a ser preso.

Nesse mesmo ano em que foi pai novamente, a publicação Galeria Republicana traça-lhe o retrato de um homem tão altivo, quanto lutador, honesto e de elevado carácter. 

 

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É ainda nessa época de tantos acontecimentos, em que o desespero de Rita Pereira de Mattos atinge o seu auge, que a Câmara de Grândola é apontada como a única no país declaradamente republicana, três décadas antes da implantação da república.

Mas isso é outra história…

 

…………………….

Agradeço a Teresa Guerreiro ter-me dado a conhecer Rita Pereira de Mattos, um tema que iria entroncar na sua própria ascendência, pois é bisneta de Maria Lúcia Feio e de José Jacinto Nunes.

…………………..

Agradeço a simpatia e a eficiência dos técnicos da Biblioteca e do Arquivo Municipal de Grândola, em especial Daniela Sousa, facilitando o acesso à documentação, mesmo à distância.

………………….

*Obviamente, não vi todos os jornais da época, mas não encontrei qualquer notícia nos que consultei.

…………………….

Fontes

Rita Pereira de Mattos – uma chamma de fogo sombrio, de Idálio Nunes e José Abreu, Edições Município de Grândola - 2021.

Prelúdios – Poesias de Rita Pereira de Mattos; Edição fac-simile; Edições Município de Grândola - 2021

 

Arquivo Distrital de Setúbal

Arquivo Distrital de Setúbal - DigitArq (arquivos.pt)

Tribunal Judicial de Santiago do Cacém: Autos de Interdição por Prodigalidade - 1877

PT/ADSTB/JUD/TJCSTC/1/011/00009

Paróquia de S. Julião - Registo de óbitos

PT/ADSTB/PRQ/PSTB03/003

Paróquia de Grândola - Registo de óbitos

PT/ADSTB/PRQ/PGDL02/003/00003

Paróquia de Grândola – Registo de casamentos

PT/ADSTB/PRQ/PGDL02/002/00001

Paróquia de Abela – Registo de batismos

PT/ADSTB/PRQ/PSTC01/001

 

 

Arquivo Municipal de Grândola

Administração do Concelho de Grândola; correspondência expedida a diversas autoridades

PT/AMGDL/ACGDL/BC/I/00012

Fundo Administração do Concelho de Grândola; Procuradoria, Registo de documentos

PT/AMGDL/ACGDL/BJ/I/00010

 

Catálogo da exposição Jacinto Nunes Republicano e Municipalista; Município de Grândola - 22 out-17 nov. 1910. Disponível aqui:

FINAL exposição.indd (cm-grandola.pt)

Comunicação A Grândola de Jacinto Nunes: uma República antes da Revolução?, de Idálio Nunes - apresentada em 24 de Outubro de 2010, no 3.º Encontro de História do Alentejo Litoral, organizado pelo Centro Cultural Emmerico Nunes em parceria com o Município de Grândola. Disponível aqui:

NUNES, Idálio, A Grândola de Jacinto Nunes - uma República antes da Revolução.pdf (cm-grandola.pt)

 

Elementos genealógicos recolhidos por Carlos Francisco Chainho

 

Roteiro Republicano da vila de Grândola. Disponível aqui:

Roteiro Republicano da Vila de Grândola.pdf (cm-grandola.pt)

 

Jorge de Vasconcelos Nunes, Memória Alentejana.pdf (uevora.pt)

 

Imagens

Catálogo da exposição Jacinto Nunes Republicano e Municipalista; Município de Grândola - 22 out-17 nov. 1910. Disponível aqui:

FINAL exposição.indd (cm-grandola.pt)

 

Roteiro Republicano da vila de Grândola. Disponível aqui:

Roteiro Republicano da Vila de Grândola.pdf (cm-grandola.pt)

 

Grândola - VIAJANDO PELO MUNDO (weebly.com)

 

https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=43654113

Hemeroteca Digital - Galeria Republicana N.º 5 (Março 1882), Domínio público

Fotografias de famíia - Teresa Guerreiro

História – Câmara Municipal de Santiago do Cacém (cm-santiagocacem.pt)

 

Arquivo Municipal de Almada

https://apps.cm-almada.pt

PT/AHALM/AHN/004/000003

https://www.portaldoanimal.org

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