A vida atribulada de Dona Filipa de Vasconcelos
As memórias que deixou escritas constituem um dos raros registos da vivência de prisioneiros portugueses em terras marroquinas e estão cheias de perigos e infortúnios. Nelas recorda também a infância, vivida em Alcácer do Sal, em finais do século XVII.
Entre o grupo de 113 prisioneiros que deu entrada no porto de Lisboa a 23 de abril de 1729, vinha uma mulher bastante especial. Tratava-se de D. Filipa de Vasconcelos, que viajava com o terceiro marido, João de Torres, e a restante família, nomeadamente os dois filhos, então com 15 e 13 anos de idade, que haviam vivido cativos desde cedo nas suas curtas vidas. Faziam parte do lote resgatado no Norte de África por D. João V, a 360 patacas por cabeça.
Filipa estivera 11 anos refém do rei de Méknes, em Marrocos. Nessa terra havia-lhe já nascido uma neta, fruto do casamento da sua filha com o cidadão galego Lourenço do Rio, também cativo.
Cumprira-se – da pior maneira – o desejo de infância desta dama, que sonhara conhecer terras distantes e povos diferentes do seu.
Efetivamente, viajara por Espanha, Itália e Marrocos (na segunda imagem, Ceuta; na terceira, Tanger). Navegou no Atlântico, no Mediterrâneo e foi em peregrinação a Meca. Andou por vários países, obrigada ou por opção, mas a sua existência começou, cerca de 1686, em Alcácer do Sal, onde também nasceram os seus dois filhos.
Era apontada como dama de grande instrução e, talvez por isso, já em Portugal, o bispo de Faro, D. Inácio de Santa Teresa a tenha incitado a escrever sobre todas as peripécias e infortúnios vividos.
É uma história onde não falta diversidade de cenários e personagens, ação e emoção, pois Dona Filipa de Vasconcelos teve uma vida plena de aventuras e contratempos. Várias vezes pegou em armas para se defender, sobreviveu a tempestades, abalroamentos e batalhas navais, a dois casamentos forçados – o primeiro dos quais com apenas 12 anos de idade – e chegou à fala com os reis de Portugal e Espanha e soberanos marroquinos, em cujo palácio serviu.
Também andou fugida, foi assaltada, despojada dos seus pertences em algumas ocasiões. Foi maltratada, pressionada a mudar de religião e esteve, como já se viu, presa largos anos em Marrocos (nesta imagem, Melkes).
As memórias mais antigas, no entanto, falam de Alcácer do Sal (na imagem, em finais do século XIX), onde residia com a sua família, gente abastada e importante na terra.
O pai, Manuel Pais de Cubedos de Vasconcelos, era natural de Alvito, mas era em Alcácer que possuía o seu Morgado. Casara com Leonor de Medina y Guzmán, natural de Jerez de La Frontera.
A filha de ambos recorda uma infância à beira Sado e em ambiente rural, embora já então recheada de imprevistos. Como daquela vez em que participou na romaria ao Senhor Jesus da Serra e acabou por cair ao rio, quando colhia flores, sendo salva por um barco de pescadores. De como, noutro momento, após escapar a um touro bravo, esteve três horas ao frio, no lodo, até que a salvassem. Ou, ainda, de como fugiu para o Convento de Nossa Senhora de Aracoeli, no castelo de Alcácer do Sal, onde Filipa queria permanecer, contra a vontade dos pais.
Os problemas a sério, no entanto, começaram com a morte do pai.
Órfã aos 12 anos, juntamente com a mãe e os irmãos, enfrenta imensas dificuldades para tomar posse dos bens herdados, tanto que, mostrando a fibra que lhe seria fundamental numa vida posterior tão cheia de provações e desafios, abala com a família, noite escura, escapando pela janela da casa, que se situava junto ao rio. Em duas ocasiões, pega numa arma para ferir o então juiz de fora de Alcácer do Sal, Nuno Baracho Encerrabodes, atingindo-o sem gravidade.
Logo depois, por pressão familiar, em situação de grande vulnerabilidade, acaba por casar ainda antes de completar os 13 anos de idade e rapidamente fica viúva, porque o marido, um cavaleiro aragonês, tomba numa batalha.
Voltaria a Alcácer com o corsário João Batista Julião – com quem também havia sido constrangida a casar e na companhia de quem ainda andou pelos mares em busca de navios para atacar.
Foi no Alentejo que nasceram os filhos, Ana e Manuel Julião de Vasconcelos, e foi aqui que passou quatro anos e meio, que terão talvez sido os mais tranquilos da sua vida, pois em breve voltariam a sair do País.
Quando regressou a Portugal, Filipa de Vasconcelos tinha já 43 anos de idade e era avó de uma criança a quem deram o seu nome.
À margem
Apesar da privação da liberdade, de ter sido por vezes maltratada e pressionada para renegar a fé cristã e dos muitos perigos que viveu, o cativeiro marroquino de Filipa de Vasconcelos, como era comum às pessoas de elevada classe social, foi em condições mais favoráveis, quando comparado com o de tantos outros prisioneiros na mesma região. Não obstante, o seu segundo marido morreu em prisão marroquina (na imagem).
Durante muitos séculos, era relativamente comum os piratas do Norte de África raptarem europeus para os escravizarem e exigirem por eles altos resgates. Salé e Argel, por exemplo, são cidades que prosperaram com base no corso e venda de cativos cristãos.
As pessoas eram levadas de navios mercantes e de barcos de pesca, mas também havia casos de incursões de pirataria em terra, com as populações mediterrânicas e do Sul de Portugal muito expostas ao risco que os “mouros” representavam.
Os mais pobres tinham como destino as masmorras e os trabalhos forçados. D. Filipa de Vasconcelos, por outro lado, como conta nas suas memórias, serviu duas rainhas de Méknes e foi ama ou percetora dos seus filhos, frequentando os aposentos reais.
A negociação tendente ao resgate destes cristãos detidos por infiéis, foi, desde o século XIII, uma responsabilidade da Ordem da Santíssima Trindade, fundada especialmente para esse fim.
Estima-se que só entre 1530 e 1750 os corsários turcos e norte-africanos tenham feito cativos mais de um milhão de europeus, algo que provocou um clima de instabilidade e insegurança entre as povoações costeiras, mas, claro, não é minimamente comparável com os números de africanos levados pelos europeus, com destino à escravatura: cerca de 12 milhões.
Mas isso é outra história…
Nota: a Habs Qara, ou prisão de Maknés - nas duas últimas imagens - também conhecida como a prisão dos escravos cristãos, é hoje uma atração turística.
Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Archivo pittoresco : semanario illustrado [1857-1868] (cm-lisboa.pt)
Archivo Pittoresco, 1860, nºs 2, 3, 6, 8, 9.
Gazeta de Lisboa, 1729, nºs 14-17 e 18-21
António Manuel Lázaro:
Edite Maria da Conceição Martins Alberto, Um negócio Piedoso, o resgate de cativos em Portugal na Época Moderna, Universidade do Minho, Instituto de Ciências Sociais, 2010. Disponível aqui: Universidade do Minho: Um negócio piedoso: o resgate de cativos em Portugal na época moderna (uminho.pt)
Frederico Mendes Paula, citando Robert Davies:
https://historiasdeportugalemarrocos.com/2016/06/30/cativos-portugueses-em-marrocos/
Imagens
A torre e a entrada da barra, gravura sobre Lisboa, encontrada aqui:
A economia portuguesa na primeira metade do século XVII - RTP Ensina
Gravura de Tânger de Peter Hass, incluída na obra Efterretniger om Marokos og Fes (1779) de George Host, reeditada na obra Relations sur les Royaumes de Marrakech et Fès, recueilles dans ces pays de 1760 à 1768 (2002), Éditions La Porte, Rabat;
Safia, de I. Peters, 1650, Bibliothèque Nationale de France.
Ambas encontradas aqui:
https://historiasdeportugalemarrocos.com/2016/06/30/cativos-portugueses-em-marrocos/
A prisão Habs Qara , em Meknés, também conhecida como a Prisão dos escravos cristãos.
QaraPrison3 - Qara Prison – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Habs Qara (Qara prison) – PREFECTURAL COUNCIL OF TOURISM OF MEKNES (visit-meknes.com)
Meknés, Marrocos, gravura, Desenho por Abdellatif Zeraidi Bd Lltyf Lzrydy
Meknes (Maroc), Desenho por Abdellatif Zeraidi Bd Lltyf Lzrydy | Artmajeur
Hemeroteca Municipal Digital
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Revista Occidente
6º ano – Volume VI – nº 168 – 21 agosto 1883
6º ano – Volume VI – nº 171 – 21 setembro 1883