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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Ainda, o pobre Luiz a quem um relâmpago tirou a vida

Como tudo se passou nessa trágica manhã

 

 

 

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O discreto memorial continua a suscitar a curiosidade de quem passa na estrada nacional nº 5, entre Alcácer do Sal e o Torrão, mas a história da tragédia que ali se recorda está há muito esquecida…ou talvez não.

Cerca de sete anos e meio depois de ter vasculhado nos assentos paroquiais e na imprensa da época para perceber o que tinha acontecido ao desafortunado Luiz que sua mãe chora nas frases gravadas naquela pedra manchada, um leitor atento e interessado abre-me mais uma janela para a vida desse adolescente que tão tragicamente se finou em 1870, fulminado por um raio.

Uma pesquisa desenvolvida 84 anos depois do funesto acontecimento, pelo conhecido médico Luís Cabral Adão (1910-1992), ajuda a explicar os versos que ainda hoje podemos ler no pequeno monumento à beira da estrada*.

Aqui perdeu de tenra idade

Uma extremosa mãe o seu Luiz

Perdeu-o porque Deus assim quis

Por efeito de horrorosa tempestade

 

Porção caiu de eletricidade

Dois cavalos matou e o infeliz

Ficam vivos um tio e outro se diz

Estando todos juntos fatalidade

 

Compreenda lá a humanidade

Os ocultos juízos dos altos Céus

Impossível e diga-se a verdade

 

Do coração arranca e lábios seus

Um sussurro da eterna saudade

A terna mãe que lhe lega oh meu Deus

 

Naquele dia 4 de outubro de 1870, Fernando António Fialho acordou de madrugada, em Vila Nova da Baronia, para, a cavalo, dirigir-se a Alcácer do Sal, onde iria esperar duas irmãs viúvas que regressavam de Setúbal. Quis acompanhá-lo o sobrinho Luiz António, filho de uma dessas senhoras, Maria Francisca de seu nome.

O amanhecer estaria agradável e morno, mas já próximo do destino, levantou-se um vento frio, o céu cobriu-se de nuvens negras e começaram a ser fustigados pela chuva, que não esperavam e para a qual não vinham preparados. Foi já perto da Barrosinha que encontraram um cantoneiro, abrigado sob uma espessa manta de lã. Vendo-os tão expostos, o homem ofereceu-lhes aquela proteção e seguiram os três, lado a lado, partilhando o mesmo agasalho.

Foi assim mesmo, abraçados pela manta protetora, que um raio, fugidio, mas fatal, os atingiu. Caíram no chão, com as montadas, ainda tentando perceber o que tinha acontecido, estonteados, entorpecidos, alarmados com o impacto do que não viram, mas ouviram em enorme estrondo e certamente sentiram de uma forma que seria muito difícil de explicar.

Fernando, o tio a que alude o poema, depressa percebeu que estava bem, apenas com uma perna insensível. Com horror, pensou até ter sido o único sobrevivente, já que os animais, o cantoneiro e o sobrinho não davam acordo de si. Entendeu depois a desgraça com que lidava: o homem que tinha acabado de conhecer estava vivo, mas atordoado (o outro, a que alude o poema) e Luiz estava morto.

Inconsolável, mas resoluto, resolveu ir a pé a Alcácer do Sal, pedir ajuda e comunicar o ocorrido.

Pertencendo a família conhecida na terra, foi bem recebido e logo correu a notícia nos quatro cantos da vila. O administrador do concelho, acolheu-o em sua casa e, a pedido de Fernando, pediu à população para ser discreta, ocultando das senhoras, esperadas a qualquer momento, a terrível realidade. Ao mesmo tempo, mandou-se um grupo ao encontro do cantoneiro, para o socorrer, e enterraram-se os cavalos mortos à beira da estrada.

O jovem falecido foi transportado para uma igreja – presumo que a da Misericórdia - à porta da qual passaram as entretanto chegadas mãe e tia, bem como dois miúdos que com elas viajavam, irmãos do pobre Luiz. Só não entraram para rezar a uma imagem de que eram devotas, porque disso foram dissuadidas por quem as acompanhava.

Logo informadas sobre o mal-estar do familiar, alegadamente acometido de uma constipação, foram ao seu encontro e só no dia seguinte seguiram todos para Vila Nova da Baronia.

Foi apenas na noite seguinte que se contou toda a triste verdade. A difícil tarefa coube ao professor da terra, José Bernardino Pinto de Melo, amigo da família, que também seria o autor do soneto gravado no memorial, que continua a suscitar curiosidade e tristeza, 155 depois, à beira da Estrana Nacional nº5, entre Alcácer e o Torrão (perto do km 66).

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*Luís Cabral Adão baseia-se no relato de Francisco Manuel Fialho, filho de Fernando António Fialho.

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Fontes

Agradeço a António Cunha Bento o envio de nova documentação sobre este tema:

Excerto do livro Flores do Rio Azul, de Luís Cabral Adão; excerto do jornal O Distrito de Setúbal, - Soneto do Luiz, 26.01.1955, Cabral Adão; excerto do jornal O Setubalense, Três Epitáfios, Falcão Machado, 13.03.1954.

Texto do blog

O jovem Luiz a quem um relâmpago tirou a vida - O sal da história

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