As joias da rainha falida foram a leilão
Durante décadas, D. Maria Pia empenhou o tesouro familiar para satisfazer necessidades financeiras cada vez mais prementes. Com a morte do “amigo” banqueiro, descobriu-se a verdade de uma monarquia havia muito arruinada que, já em tempos de Republica, viu a sua antiga riqueza ser leiloada.
Pérolas raras; gemas ímpares; ouro e prata finíssimos, artisticamente trabalhados em objetos que a multidão aprecia com olhos ávidos de cobiça e um certo sorrido escarninho, enquanto os especialistas analisam, como piratas de outros tempos avaliando o produto de um saque e regateando o seu quinhão. Eram 367, as requintadas peças que antes adornaram a real figura de Maria Pia e naquele início de verão de 1912 foram à praça para que se recuperassem os valores emprestadas à rainha, que vivia acima das suas posses e dependia da boa vontade do amigo banqueiro para continuar a manter as aparências.
Ninguém sabe ao certo quando começou tal expediente, quando é que o banco se transformou em penhorista e a rainha começou esse ciclo vicioso de empenhar as joias pessoais, mas também as baixelas de prata e outras preciosidades, enfim, tudo o que pudesse ter valor para superar despesas imprevistas que a sua condição não lhe permitia conseguir de outra forma. Com a instauração da República, ficou a nu a verdadeira condição da soberana, mas com a morte do amigo Henry Burnay, em 1909, e de D. Maria Pia, em 1911, calaram-se para sempre as explicações sobre tal entendimento.
A sede do Banco de Portugal foi o palco escolhido para mostrar e vender a quem desse mais o riquíssimo espólio. A missão durou vários dias e atraiu numerosa assistência, em especial “senhoras da primeira sociedade” lisboeta, que foi como a imprensa classificou as muitas beldades – outras nem tanto – que se acotovelaram para conseguir os melhores lugares.
Aliciado para o evento foi, claro está, o exclusivo grupo que constituía a nata dos joalheiros europeus, colecionadores e comerciantes de joias.
E mirones, centenas deles, que se espalharam pelos corredores, tal como os muitos polícias presentes.
Durante o leilão, houve de tudo: lotes “disputados com ardor pelos entendidos”, outros, contrariamente, “licitados com muita dificuldade”, outros, ainda, retirados porque não atingiram o valor pretendido.
De fora não ficaram igualmente acusações de “burla” e indignação pelo preço considerado elevado de alguns objetos, o que fez, com estranha facilidade, descambar para uma “balbúrdia medonha” a aparente fineza de trato de tão educado público.
Assim, foram desfilando pregadeiras, pulseiras, colares, brincos, gargantilhas, diademas – um dos quais, por curiosidade, comprado a prestações por D. Pedro V para ofertar a D. Estefânia - fivelas, botões de punho, frascos de cristal e safira, alfinetes de gravata, uma lapiseira em ouro, fruteiras, candelabros…enfim, toda uma parafernália de bens sofisticados, cuja utilidade, em alguns casos, escapava até ao cidadão comum e que a rainha dolorosamente empenhou para satisfazer outros luxos ou atender à caridade, pela qual era tão reconhecida como pelo exagero nos adereços. Peças que herdou, recebeu de presente ou comprou e das quais se viu privada.
O estratagema manteve-se porque o poderoso Burnay – uma espécie de “dono disto tudo” daquela época - “emprestava” as joias à monarca, que já não era sua dona, para que se pudesse adornar com elas em determinadas ocasiões oficiais, devolvendo-as aos cofres do banco uns dias depois, sem ter que dar justificações inconvenientes, embora, imagine-se, angustiada e triste com tal situação.
O leilão, “nota palpitante da vida lisboeta” enquanto durou, angariou 851.678 escudos, praticamente o triplo dos cálculos iniciais para o valor das peças.
Ironicamente, por aqueles dias, um outro acontecimento reuniu a fina flor da sociedade da Capital da já República Portuguesa.
Na igreja do Loreto, celebrou-se missa para assinalar um ano sobre a morte da princesa italiana que chegou a Portugal ainda adolescente para casar com D. Luís e por estas bandas foi rainha quase três décadas.
A mesma Maria Pia que, por opção, morreu na sua terra natal, longe dos restantes elementos da família no exílio e é a única que não está sepultada em Portugal.
Morreu sozinha, mas poupada ao desgosto de ver leiloados os tesouros que um dia foram seus.
À margem
Ao longo de uma história tão longa como a de Portugal, muitos foram os momentos em que as joias da coroa – acumuladas em outras ocasiões mais felizes e prósperas – serviram de moeda de troca em apertos financeiros, simplesmente foram malbaratadas ou roubadas. O domínio filipino, o terramoto e tsunami de 1755 e a transferência da corte para o Brasil durante as invasões francesas foram, provavelmente, os períodos em que se registaram mais perdas no tesouro real. O que sobra e o que tem vindo a ser recuperado ao longo dos tempos – nomeadamente peças leiloadas em 1912 - está à guarda do Estado e foram vistas em conjunto apenas uma vez, numa exposição realizada em 1954.
Estre cerca de cem peças estão algumas especialmente emblemáticas, como a coroa real com 2,5 quilos de ouro; a tabaqueira mais luxuosa do mundo; a laça - laço de peitilho com 216 diamantes e 31 esmeraldas (na imagem) ou o colar e diadema de estrelas, parte de um conjunto que constituiu uma das primeiras encomendas de Maria Pia ao chegar a Portugal. A partir de 2020 espera-se que possam voltar a ser admiradas, de forma permanente, numa nova ala do Palácio Nacional da Ajuda, a ser erguida especialmente para esse efeito e que conclui a construção daquele monumento, que esteve encerrado meio século após a implantação da República.
Mas isso é outra história...
Fontes:
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
A Capital
Edições de 20, 23, 24, 25, 26, 27, 29 30, 31 jul. 1912
O Occidente
35º ano, XXXV volume, nº1209 – 30 jul. 1912
Illustração Portugueza
Nº114 – 27 abr. 1908
Nº282 – 17 jul. 1911
Nº334, 15 jul. 1912
Nº337, 5 ago. 1912
http://www.palacioajuda.gov.pt/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Pia_de_Saboia
https://expresso.sapo.pt/cultura/2016-09-20-O-esplendor-de-uma-gloria-perdida#gs.27EQLpc
Imagens
Fontes mencionadas
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Eduardo Portugal
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001229
Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian
https://www.flickr.com/photos/biblarte/albums/72157702537671714