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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

As máquinas de ressuscitar de Pina Manique

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O Intendente-Geral da Polícia era tão poderoso que nem os suicidas podiam morrer descansados: mandou vir máquinas para dar vida aos mortos, um tratamento que tinha o fumo do tabaco como "princípio ativo", insuflado por um orifício…que não era a boca. Estranham-se, pois, os sucessos relatados, com a sua utilização.

 

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Diogo Inácio de Pina Manique ocupou em simultâneo e sucessivamente um vasto conjunto de altos cargos, que o tornaram, durante muitos anos, um dos mais poderosos homens do reino. Como se não bastassem todas as responsabilidades oficiais que congregava, ainda teve disponibilidade para se intrometer em assuntos que, à partida, nada tinham que ver com as suas esferas de domínio. Foi assim que se tornou patrono de jovens artistas e aspirantes a ginecologistas enviados para estudar no estrangeiro, foi um dos fundadores do Real Teatro de São Carlos e importou máquinas de ressuscitar que mandou distribuir para que pudessem ajudar a salvar vidas…através da defumação com emanações de tabaco.

Estava então entre as preocupações das mentes esclarecidas a questão da morte aparente e dos sinais inequívocos de falecimento. Os conhecimentos científicos eram rudimentares e Pina Manique soube da invenção, em Londres, de um aparelho que devolvia a vida aos afogados e apopléticos, prometendo também excelentes resultados em diagnósticos de torpores e catarral, o que, aliás, teria sido comprovado numa das principais figuras de Lisboa e era já amplamente usado em França e Inglaterra, por exemplo.

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Em 1789, encomendou então um conjunto destes equipamentos, com os quais dotou o hospital militar e o de São José, algumas casas religiosas e outros locais fora de Lisboa, para além de ter reservado uns quantos nas instalações da “sua” Casa Pia, para emprestar aos médicos que, em caso de emergência, necessitassem de os utilizar.

O conceito era o mesmo dos atuais desfibriladores que se tornaram obrigatórios em espaços muito frequentados, embora seja difícil aceitar que estas máquinas de ressuscitar pudessem ter algum efeito, já que a sua ação consistia na introdução repetida de fumo de tabaco pelo ânus do moribundo.

Isso era, pelo menos, o que preconizavam as instruções do inventor, John Mudge, mas não era a prática dos físicos portugueses, que as achavam pouco eficazes. Talvez por isso se registassem alguns sucessos na sua utilização.

Na realidade, só após reanimarem as pessoas é que os nossos especialistas lá anuíam em introduzir o fumo pelo orifício recomendado pelo criador do engenho, só para não parecer que desdenhavam dos seus ensinamentos.

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Os casos mais falados na época foram o de um ourives da rua da Prata cujos vizinhos, estranhando ver a porta do estabelecimento encerrada por dias, resolveram arrombá-la. Encontrando-o inanimado, chamou-se alguém para verificar o passamento e elaborar o auto, mas, em vez disso, depois de algumas horas de labuta, acabou por ser devolvido ao mundo dos vivos.

O mesmo aconteceu, no mesmo mês e ano, com João Policarpo, que se havia enforcado e foi levado como morto ao hospital de São José, sem pulso ou respiração. Não lhe valendo as primeiras intervenções a que foi sujeito – pés em água quente e ventosas – mandaram-no enterrar. Não convencido, o cirurgião António de Almeida foi buscar o fumigador e inseriu-lhe fumo pela boca e, depois de sucessivas tentativas, teve um estremecimento e um violento vómito, com o qual voltou a si. Pouco tempo depois, já falava e comia.

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Finalmente, uma menina caiu num poço, na fábrica de vidro Stephens, na Marinha Grande, tendo-se afogado. Novamente, lhe introduziram fumo enchendo o bofe e a salvaram.

Estes êxitos eram acompanhados de perto pelo Intendente-Geral da Polícia, que chegou a agraciar os salvadores com dinheiro e louvores.

O tema do resgate de vidas prestes a esvanecerem-se, ou da recuperação de quem se pensa estar já “do lado de lá”, interessava sobremaneira a Pina Manique, que fez traduzir e publicar, com correções e distribuição alargada, folhetos sobre primeiros-socorros e reanimação, nos quais se aludia a experiências com eletricidade e se aconselhava a que, sem o aval de um médico sábio, não se procedesse a sangrias, uma operação corriqueira a que até os barbeiros recorriam.

Deu também indicações para que se autopsiassem as pessoas que morriam subitamente, para se aferir da causa da morte e se perceber de que forma poderiam ter sido socorridas e salvas.

É claro que estas preocupações e as ações desenvolvidas não eram totalmente isentas de segundas intenções e acabaram por aumentar o prestígio de Diogo Inácio, nomeadamente fora de portas, com a sua nomeação como diretor honorário da Real Sociedade Humanitária de Londres.

 

À margem

É difícil sintetizar toda a atividade de Pina Manique, tão abrangente se manifestou. Das obras públicas, à segurança; da higiene pública, à prevenção e combate às epidemias; do recenseamento da população, classes profissionais e comerciais, ao controlo das alfândegas; das artes à assistência social, as suas competências extravasaram em muito as de um mero Intendente-Geral da Polícia, cargo pelo qual ficou mais conhecido.

Obviamente que tamanho poder e, por vezes, ingerência em interesses e poderes instalados, resultou em numerosas críticas e um exército de inimigos prontos a atacar. Manique também não esteve isento de medidas duras e impopulares: em 1777, por exemplo, a mando do Marquês de Pombal, executou a destruição pelo fogo da aldeia da Trafaria.

A sua maior obra terá sido, eventualmente, a Casa Pia de Lisboa, inaugurada com grande aparato em 3 de julho de 1780 e destinada a recolher adultos e menores necessitados de assistência, nomeadamente órfãos, mendigos e meretrizes, aos quais era dada formação em diversos ofícios, retirando-os das ruas.

Não deixa de ser curioso que o largo onde morou e a que foi dado o nome do Intendente Pina Manique, que tanto pugnou para “limpar” o espaço público de indesejáveis, tenha sido, durante muito tempo, reconhecido como um dos principais locais de marginalidade e prostituição de Lisboa

Mas isso é outra história…

 

 

Fontes

José Norton, Pina Manique, Fundador da Casa pia de lisboa, Lisboa, Bertrand Editora, Chiado, 2004.

Augusto da Silva Carvalho, Pina Manique, O Ditador Sanitário, Lisboa, Archivo de Medicina Legal, Imprensa Nacional, 1939, disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, em www.purl.pt

Jean Luiz Neves Abreu, Morte Aparente e Práticas de Reanimação: Um Estudo a Partir da Literatura Médica no Contexto da Ilustração em Portugal (1770-1818), in Projeto História, São Paulo, v. 75, pp. 169-194, Universidade Federal da Uberlândia, set.-dez., 2022. Disponível em: https://orcid.org/0000-0003-0500-6287

 

Imagens

https://wellcomecollection.org/works/quwa57z5/items?canvas=261 e https://wellcomecollection.org/works/fh9naxm8/items obtidos em Jean Luiz Neves Abreu, Morte Aparente e Práticas de Reanimação: Um Estudo a Partir da Literatura Médica no Contexto da Ilustração em Portugal (1770-1818), in Projeto História, São Paulo, v. 75, pp. 169-194, Universidade Federal da Uberlândia, set.-dez., 2022. Disponível em: https://orcid.org/0000-0003-0500-6287

Augusto da Silva Carvalho, Pina Manique, O Ditador Sanitário, Lisboa, Archivo de Medicina Legal, Imprensa Nacional, 1939, disponível na Biblioteca Nacional de Portugal, em www.purl.pt

https://jpcnortonm.wordpress.com/2020/03/24/a-maquina-de-ressuscitar/

https://www.google.com/imgres?q=ressuscitar%20afogados%20antigo&imgurl=https%3A%2F%2Fjpcnortonm.wordpress.com%2Fwp-content%2Fuploads%2F2020%2F03%2Fclister.jpg%3Fw%3D591&imgrefurl=https%3A%2F%2Fjpcnortonm.wordpress.com%2F2020%2F03%2F24%2Fa-maquina-de-ressuscitar%2F&docid=n-zhChsqtoDSTM&tbnid=_7mDjCi1Ixl2mM&vet=12ahUKEwj6i5665-iKAxUmX_EDHWSSLcAQM3oECBcQAA..i&w=591&h=800&hcb=2&ved=2ahUKEwj6i5665-iKAxUmX_EDHWSSLcAQM3oECBcQAA

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