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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

As primeiras impressões são as que contam

 

impressões de joaquim gomes à entrada no Limoeir

 

Suicidou-se aos 32 amos o homem que, inadvertidamente, ficaria na história da medicina legal em Portugal. Tudo por causa de um atrevido jovem estudante de medicina de serviço na Morgue de Lisboa.

ponte cais 2.png

Joaquim Gomes morreu de forma inglória enforcando-se sob a ponte-cais dos Vapores Lisbonenses, ao Cais do Sodré, em Lisboa (na imagem). Que se saiba, nada na sua vida de 32 anos o fez destacar dos demais, para além do facto de ter resvalado para a pequena criminalidade, o que o arrastou para os tribunais, onde foi julgado e condenado. Quando foi encontrado sem vida, ninguém sabia quem era, pois não tinha consigo qualquer identificação, nem se apresentaram testemunhas do suicídio. Era impossível prever que, involuntariamente, ficaria na história do nosso País.

Foi, portanto, assim, anónimo, sem rótulo, que deu entrada na Morgue de Lisboa (na segunda imagem) para ser autopsiado, a 8 de novembro de 1904, dois dias depois de ter tomado a decisão final de se suspender pelo pescoço.

Era solteiro, analfabeto e natural de Arcos de Valdevez, onde talvez apenas os pais, Manuel e Rosa, se ainda fossem vivos, se lembrariam dele.

Não vislumbraria outra saída para a sua triste existência, saldada que estava a dívida que tivera para com a justiça, com a pena de 60 dias de prisão que cumprira na Cadeia do Limoeiro, que o havia já devolvido à rua dois meses antes. Nada o distinguia da enorme massa humana que pululava na capital, vinda de todos os recantos do País em busca de uma vida melhor, apenas encontrando miséria e adversidade.

morgue de lisboa.jpg

Quis o destino que, nessa tarde, estivesse a assistir às perícias um aluno do quinto ano de medicina especialmente curioso e particularmente interessado em dactiloscopia, insondável tema sobre o qual pretendia apresentar a sua tese.

Apesar de a recolha de impressões digitais para identificação de cadáveres só ter sido instituída na Morgue de Lisboa três anos depois, pelo então diretor, Azevedo Neves, o tal aluno pediu autorização para fazer a sua primeira colheita, logo após a autopsia daquele desconhecido.

Por sorte, teve a ajudá-lo na manobra, Leonel Pereira, classificador e arquivista do Posto Antopométrico Central, da Cadeia do Limoeiro, que fez chegar ao tal estudante empenhado a ficha de um homem recentemente libertado e cujo rasto se havia perdido. Tratava-se do preso nº1833.

rodolfo xavier da silva.png

Ora, foi a partir do cruzamento das finas e ténues linhas das impressões também registadas na ficha e das marcas dos dedos do cadáver sem nome que Rodolfo Xavier da Silva – assim se chamava o aspirante a médico – fez aquela que foi, em Portugal, a primeira identificação de um cadáver a partir das impressões digitais.

Foi o início de um longo percurso de utilização da dactiloscopia para a identificação humana, em mortos e vivos. E, para que este sucesso fosse o início de muitos, esta matéria foi introduzida, logo nesse ano letivo, nas avaliações da cadeira de medicina legal na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Por coincidência, ao tal aluno interessado calhou em sorte precisamente o exercício dessa temática. 

Nada que assustasse Rodolfo Xavier da Silva (na imagem), que seria também o autor da primeira tese sobre o assunto, e de numerosa obra sobre medicina legal. Foi diretor do Instituto de Criminologia de Lisboa, criado em 1919, e também enveredou pela política, tendo chegado por três vezes a ministro: dos Negócios Estrangeiros, do Trabalho e da Instrução.

 

À margem

Foi graças ao senhor Alphonse Betillon e o seu sistema de antropometria adaptado à criminologia, que se sistematizou a recolha de dados físicos distintivos daqueles que eram apanhados nas malhas da justiça. Os detidos eram cuidadosamente observados e medidos em diversas partes do seu corpo, facilitando a sua identificação em futuras ocasiões, quer estivessem vivos ou mortos.

ficha de joaquim gomes à entrada no Limoeiro.png

O método foi um tal sucesso, que rapidamente foi adotado por toda a Europa.

Estas fichas passaram depois a apresentar as impressões digitais e as fotografias dos indivíduos, acrescentando mais informação que pudesse ser usada pela polícia.

Em Portugal, foi o então diretor da Morgue de Lisboa, Azevedo Neves que, em 1911, estipulou, a recolha das impressões digitais dos mortos entrados naquele serviço, apesar dessa prática já acontecer, informalmente. Pretendia, assim, evitar erros e trocas que o simples reconhecimento com uma etiqueta atada por um cordel a um dedo do pé poderia suscitar.

Como a identificação à chegada era elaborada com base na informação fornecida pelas autoridades de origem, pretendia-se, assim, garantir “não a identidade da pessoa, nome, filiação, etc.), mas a identidade do cadáver”, que ficaria associado ao seu conjunto de impressões digitais, únicas e intransmissíveis, como era explicado no Guia de Autópsias escrito pelo referido médico.

Por cá, as morgues foram criadas por carta de lei de agosto de 1899, durante o reinado de D. Carlos. Fundaram-se junto das escolas médico-cirúrgicas de Lisboa e  Porto e da Universidade de Medicina de Coimbra.

Funcionavam em condições terríveis de segurança e higiene, o que só se começaria a resolver com a fundação do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, pelo então presidente, Sidónio Pais, já em 1918.

Curiosamente foram estes dois governantes, que acabaram assassinados, os responsáveis pela melhoria das condições para perícias médico-legais, muito úteis para perceber homicídios, mas que de nada valeram para incriminar os verdadeiros responsáveis pelas suas próprias mortes.

Mas isso é outra história…

 

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A criminologia científica dava então os primeiros passos, graças a esforços como os de Azevedo Neves e os contributos de alguns considerados excêntricos, como o “Ferraz das caveiras”.

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Fontes

Rodolfo Xavier da Silva, in Archivo de Medicina Legal, dir. Azevedo Neves, 1º volume, 1º ano 1922, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1923. pp 436-440.

Disponível no Centro de Documentação da Polícia Judiciária (cuja eficiência agradeço)

 

Francisco Moita Flores, Mataram o Sidónio, Alfragide, Leya SA, 2010.

Instituto de Criminologia - Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)

Rodolfo Xavier da Silva (Ministro da Instrução Pública; Médico, Diretor da 1.ª secção do Instituto de Criminologia; Assistente da Faculdade de Medicina) - Arquivo Histórico da Presidência da República - Archeevo (presidencia.pt)

 

1921-1936 | Secretaria-Geral do Ministério da Educação | Portugal

 

Manuela Marques, Sidónio Pais e o Instituto de Medicina Legal – Importância na vida e na morte, 15.03.2022. Disponível aqui:

Microsoft PowerPoint - Sidónio Pais e o Instituto de Medicina Legal

 

Imagens

Rodolfo Xavier da Silva, in Archivo de Medicina Legal, dir. Azevedo Neves, 1º volue, 1º ano 1922, Oficinas Gráficas da Biblioteca Nacional, 1923. pp 436-440.

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Rodolfo Xavier da Silva – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra

Ponte-cais da Parceria dos Vapores Lisbonenses, PT/APLSS/PL/02-03/01/2-12-001, PT/APLSS/PL/02-03/01/2-12-002

 

Arquivo Municipal de Lisboa

Edifício da antiga Morgue de Lisboa, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/EDP/001862

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