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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

As revoltas que a fome amassou

 

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A indignação tem muitos nomes. O estômago vazio fez o povo sair à rua e amotinar-se inúmeras vezes. Essas ações, bastas vezes resultantes do calor do momento e rapidamente amordaçadas, ficaram para a história com os mais sugestivos e "nutritivos" títulos.

Revoltas, tumultos, altercações, motins. Numa história tão longa como a de Portugal, foram inúmeras as vezes que o povo saiu à rua bramindo razões e indignação. No centro da agitação esteve, muitas vezes, a tirania que impunha pesados impostos às massas, invariavelmente famintas. Muitas destas ações não passaram de fogachos, mas de outras resultaram verdadeiras revoluções políticas e sociais. Algumas ficaram na história com os mais estranhos e enigmáticos títulos.

A miséria e, sobretudo, a fome foram demasiadas ocasiões o principal instigador destas ações subversivas. Não será, pois, de estranhar que um grande número de agitações sociais tenha ganho o nome de bens alimentares.  Não precisamos recuar muito para encontrar a revolta da batata ou do grelo, do leite e da farinha, do inhame ou da água-pé.

Mas, vamos por partes.

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Em finais do século XVII, ainda mal tínhamos reassumido as rédeas do País depois do domínio filipino, os altos custos das guerras da restauração estiveram precisamente na origem da chamada “revolta dos inhames”.

Cultivados em pequenas parcelas – as fajãs - nas zonas húmidas, escarpadas e de penoso acesso da ilha de São Jorge, nos Açores, os inhames constituíam um garante de alimento para os escravos e os mais pobres, sujeitos às variações de outras culturas mais caprichosas.

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Compreende-se a ira destas franjas da população quando o Estado criou o dízimo das miunças e ervagens, pretexto para taxar estes nutritivos caules subterrâneos, ainda mais, obrigando os pequenos agricultores a fazerem o transporte até ao local onde deveriam ser entregues ao fisco, personificado pelos implacáveis comerciantes que arrematavam a cobrança do imposto.

Tal imposição motivou tumultos e tentativas de boicote ao pagamento, que tiveram como resposta a repressão, interrogatórios e prisões.

O inhame, hoje menos abundante, figura ainda orgulhoso no brasão de Ribeira Seca (Calheta), lembrando a sua antiga importância.

O povo, esse, foi mesmo obrigado a pagar, enfrentando uma ainda maior miséria que empurrou muitos para a emigração nos séculos seguintes.

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Dando um salto de 200 anos, temos a que ficou conhecida como a “revolta dos grelos”, por ter como personagens principais os camponeses que vendiam os seus produtos hortícolas no mercado de Coimbra.

Quando, em 1903, lhes foi exigido o pagamento de imposto de selo como licença para esta atividade, rejeitaram essa novidade e reagiram com violência às pesadas multas aplicadas. Cortaram estradas e, coadjuvados por operários e estudantes que se tinham associado à onda de indignação, tomaram de assalto o edifício das finanças e fecharam a universidade.

As manifestações deram até brado no parlamento e o clamor foi tal que, efetivamente, nos anos que se seguiram, o novo imposto não foi cobrado, mas permaneceu na lei, à espera do melhor momento para ser aplicado de novo.

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Se o fim da monarquia foi tumultuoso, a Primeira República foi igualmente pródiga em dificuldades.

Em 20 de outubro de 1914, dá-se a “revolta da água-pé”, que deve o seu nome à época em que ocorreu – auge da produção do célebre líquido ali para a zona saloia, onde teve o seu epicentro (Mafra e Torres Vedras), sendo a isso alheios os realistas que a levaram por diante.

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Já a “revolta da batata”, ocorrida três anos depois, resultou do insuportável aumento do custo de vida, com consequente escassez de bens alimentares – como o célebre tubérculo e o próprio pão – num País exaurido pela guerra.

Este foi o cenário “perfeito” para o eclodir de uma série de altercações, com os populares a pilhar lojas e armazéns, roubando o que não tinham dinheiro para comprar.

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Embora com efeitos no resto do território, esta rebelião teve os seus momentos mais dramáticos em Lisboa, onde foi decretado o Estado de Sítio, e no Porto. Morreram cerca de 40 pessoas e mais de 400 foram presas.

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Já em pleno Estado Novo, há novas sublevações com nome de alimentos.

Na ilha da Madeira - que, aliás, seria palco de muitos tumultos neste período - rebenta, em fevereiro de 1931, a “revolta da farinha”, compreensivelmente em resultado do denominado “decreto da fome”, que dava à Administração Central o monopólio da importação de trigo e outros cereais, e centralizava a sua gestão num pequeno grupo de moageiros.

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A decisão, integrada num conjunto de medidas restritivas tendentes a atenuar os efeitos da Grande Depressão em Portugal - como habitual - vai afetar os mais pobres que não têm meios para pagar o insuficientemente e inflacionado pão, envolvendo-se em saques e confrontos graves, que resultam em várias mortes.

 

Em 1934, igualmente na Madeira, há mais motivos de repulsa popular, na sequência de nova legislação que entrega a uma única família a produção de açúcar.

Mas, é dois anos depois, quando o regime pretende fazer o mesmo com o leite, que estala a ira dos madeirenses, pela voz dos pequenos produtores, vistos de fora do processo que criava a Junta Nacional dos Laticínios da Madeira.

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Diz o ditado que “não há fome que não dê em fartura”, mas a realidade mostra que a única abundância nos casos relatados foi de violência. É que, como também diz o povo, em “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.

 

À margem

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O denominado “motim das maçarocas” foi, em 1629, a primeira manifestação contra o domínio filipino que então subjugava Portugal. Ao contrário do que se possa pensar, não alude a maçarocas de milho, mas antes, às meadas de linho fiado que no Porto têm essa denominação e os espanhóis quiseram taxar para custear as guerras em que estavam envolvidos, nomeadamente na Índia portuguesa. As fiadeiras portuenses revoltadas correram à pedrada o representante do rei – Francisco de Lucena – que, curiosamente, anos mais tarde (1642), seria decapitado em Lisboa por crime de traição e lesa-majestade, já depois de recolocarmos um rei português no trono do País.

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Curiosamente, o cereal que mais rapidamente associamos às maçarocas é igualmente apontado como causa de uma enorme revolução, mas nos nossos campos. Depois das transformações trazidas pelos romanos quando ocuparam este nosso território à beira-mar plantado, a introdução do milho – vindo das “Americas” - foi a maior transformação na nossa agricultura. Em cinco séculos, passou de planta em adaptação ao solo e ao clima, a uma das culturas dominantes, com algumas modificações genéticas pelo caminho, claro.

Mas isso é outra história.

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Nota: as últimas duas imagens são meramente ilustrativas dos produtos de que estamos a falar.

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Fontes

Revolta da Farinha – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta do Leite – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta da Água-Pé – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta da Batata – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Revolta dos inhames – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Motim das Maçarocas – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

 

Revolta da batata (maio 1917) (parlamento.pt)

COMUNICAR (parlamento.pt)

 

Hemeroteca Digital de Lisboa

Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)

Illustração Portugueza

2ª série; nº589 – 4 jun. 1917

 

O Ocidente

26º ano; XXVI volume; nº872 - 20 de março de 1903

 

O meu país – Notas sobre nacionalismo; de Maria Filomena Mónica; Relógio d´´Agua – nov 2020

 

A revolução do Milho em Portugal séc. XVI-XX, de Anabela Ramos, LBB2PT/UM. Disponível em: http://www.anpromis.pt/

Milho: passado, presente ou futuro?, de Pedro Mendes-Moreira e Maria Carlota Vaz Patto; Escola Superior Agrária de Coimbra, Departamento de Ciências Agronómicas; Instituto de Tecnologia Química e Biológica (ITQB); Universidade Nova de Lisboa e Associação ZEA +. Disponível em:  http://www.agronegocios.eu/

 

 

Imagens

Calheta - Litografia da Vila da Calheta por James Bulwer, de 1827. Disponível em:olho de fogo: Querida Calheta

Revolta da Farinha – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Foto colocada à disposição pública por: Abel Zeferino - Foto retirado do site: http://www.netmadeira.com/ e colocada à disposição por um dos membros

Revolta do Leite – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Por Desconhecido - Imagem retirada do bloque: http://miguelabarreiro.spaces.live.comPode ser encontrada através do link: http://miguelabarreiro.spaces.live.com/blog/cns!C98867CE325B9294!1177.entry, Domínio público

Illustração Portugueza

2ª série; nº589 – 4 jun. 1917

O linho – E duma planta se faz um tecido único! | Folclore.PT

https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=11752964

Centro de Documentação 25 de Abril - Page Site (uc.pt)

Assinala-se hoje o aniversário da “Revolta da Água-Pé” levada a cabo a partir de Mafra | Jornal de Mafra

milho (capeiaarraiana.pt)

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