Cabral e o “milagre” da multiplicação de sepulturas
Até 1839 o grande navegador Pedro Álvares Cabral não tinha sepultura conhecida. Não é que faltassem documentos a informar onde repousava para a eternidade, mas ninguém parecia interessar-se sobre o assunto. Hoje, possui nada menos que quatro monumentos funerários onde é admirado pelos seus importantes feitos. O autêntico é aquele onde estavam também ossadas de pelo menos seis tipos de animais.
Na Internet circulam as mais mirabolantes versões sobre como foi possível desdobrar o navegador Pedro Álvares Cabral por Santarém, Belmonte, Rio de Janeiro e, claro, o Panteão Nacional, mas a verdade nem é muito difícil de apurar.
Só 319 anos após a sua morte, é que surgiu interesse sobre o paradeiro dos restos mortais do homem responsável, em 1500, pela extraordinária descoberta da joia da coroa do nosso outrora império colonial.
O historiador Francisco Varnhagen - nascido no Brasil, de mãe portuguesa e pai alemão - veio em busca das origens e, sabendo que Cabral havia morrido afastado da fama e desterrado da corte, em Santarém, encontrou, na igreja de Nossa Senhora da Graça, um templo então abandonado e praticamente em ruínas, a campa rasa onde, segundo o epitáfio, estaria o navegador, a mulher e todos os herdeiros.
O tema voltou a cair no esquecimento até à visita a Portugal do próprio imperador do Brasil, em 1872. D. Pedro II quis visitar a sepultura do “pai fundador” e ficou indignado pelo desprezo e a humilhação a que as suas cinzas estavam votadas, para além de preocupado com os boatos de o espaço ter sido profanado e espoliado durante as invasões francesas (1807-1810) e de novo revolvido e aterrado no decorrer das guerras entre liberais e absolutistas (1832-1834).
Propôs que se fizesse a abertura do sepulcro e exumação das ossadas, para apurar, se possível, quem estava ali enterrado.
Dez anos depois, por iniciativa de um grupo de patrióticos escalabitanos, procedeu-se à exumação das três ossadas encontradas na camada superficial de terra do jazigo, não tendo sido possível identificar quem quer que fosse.
Apenas em 1903 – mais de duas décadas após a primeira exumação! – numa iniciativa do brasileiro Alberto de Carvalho apoiada pela embaixada brasileira em Lisboa, com a presença de um médico anatomista e de um arqueólogo - José António Serrano e José Leite Vasconcelos – retirou-se todo o conteúdo da ampla sepultura.
O relatório desta operação dava conta que ali estavam não apenas três, mas sim “muitas pessoas de várias idades e sexos”, afigurando-se impossível determinar quantas, embora, seguramente, um mínimo de seis adultos e duas ou três crianças.
Não havia qualquer sinal de anterior violação do espaço, mas também não se conseguia, com os meios disponíveis, saber qual das ossadas pertencia ao insigne descobridor do Brasil.
Depois de analisados e identificados também todos os objetos e outros vestígios – alguns bem bizarros (ver À margem) – o conteúdo foi depositado novamente na campa, no interior de uma urna de pedra.
É aqui que se dá a primeira multiplicação de sepulturas. Em dois pequenos caixões de mogno forrados a metal foi colocado “um pouco de terra saturada de pó humano encontrada no túmulo”, destinada “a ser conservada como preciosa recordação” de Pedro Álvares Cabral.
Um dos féretros simbólicos seguiu para a Sociedade Portuguesa de Geografia e o outro foi transportado para o Brasil, onde ainda hoje pode ser visitado, na Catedral Metropolitana do Rio de Janeiro – antiga Sé.
Quem ali chega é informado estar perante “os resíduos mortais de Pedro Álvares Cabral”, trazidos de Santarém, o que, não sendo mentira, pode suscitar enganos.
Ora, em Belmonte, terra onde nasceu o navegador, encontramos, na igreja de Santiago, o panteão dos Cabrais. E quem é que se anuncia estar depositado naquele espaço? Precisamente Pedro Álvares Cabral, mais propriamente as suas cinzas, que também terão vindo de Santarém*.
Resta o Panteão Nacional. Entre Luís de Camões e o Infante D. Henrique, está o cenotáfio de Pedro Álvares Cabral. Mais uma vez, a julgar pelo formato da urna e por se saber que repousam naquele monumento os “grandes” de Portugal, o português mais distraído e, de resto, qualquer turista, pode ser levado ao engano, desconhecendo que aquela é uma tumba alegórica, erigida apenas para homenagear o descobridor Pedro Álvares Cabral.
Sim, porque na verdadeira sepultura, em Santarém, apenas se enaltece a mulher – afirmando-se que foi camareira da infanta D. Maria – fazendo-se letra morta dos elogios ao patriarca da família sepultada.
Valha-nos a informação recente ali colocada e a proximidade da Casa do Brasil – na esquina oposta - onde parte desta história é contada.
À margem
No dia 14 de março de 1903, uma pequena multidão de convidados e curiosos assistia entusiasmada à reabertura da campa de Pedro Álvares Cabral. Foi um ato complexo e demorado, se tivermos em conta que só a remoção da enorme laje demorou umas longas duas horas de trabalho.
Depois, foi necessário retirar todo o conteúdo do sepulcro, que foi analisado por peritos. Para além das expetáveis ossadas humanas e fragmentos de pequenos objetos comuns em enterramentos ao longo dos anos, encontraram-se inusitados restos mortais de diversos animais, a saber: a cabeça óssea de uma cabra - o que, enfim, não seria de espantar por mera simbologia, na campa da família Cabral – mas, também, ossos de coelho, boi, porco, galinha e conchas bivalves. Esta identificação só foi possível com a minuciosa análise do naturalista Alberto Girard, o que não tornou menos bizarra a descoberta, que nenhum dos peritos explicou.
Tudo voltou a ser colocado no interior da tumba, na capela de S. João Batista, da igreja de Nossa Senhora da Graça.
Mas, são numerosos os textos brasileiros que circulam na Internet e se questionam sobre o paradeiro das ossadas de Pedro Álvares Cabral, afirmando que, na sepultura, se encontrou um carneiro. Desconhece-se, talvez, que no português de Portugal, o termo “carneiro” é usado para designar um sepulcro, não o seu conteúdo (na imagens, carneiros do panteão dos Cabrais, em Belmonte).
Mas isso é outra história…
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*Destas “cinzas”, a autarquia local já dispôs de uma parte para depositar aos pés da estátua de Gonçalo Velho Cabral, em São Miguel, nos Açores, no âmbito de uma geminação entre os dois municípios.
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Fontes
Auto da exumação dos ossos de Pedro Álvares Cabral, Arquivo Nacional de Torre do Tombo, PT/TT/GAV/16/4/14.
Exposição a El-Rei, acompanhando o duplicado do auto do reconhecimento solene da existência dos restos mortais de Pedro Álvares Cabral, no seu jazigo em Santarém, para que se digne mandá-lo guardar no arquivo da Torre do Tombo, Arquivo Nacional de Torre do Tombo, PT/TT/AA/001/0031/00073.
Auto de reconhecimento dos restos mortais de Pedro Álvares Cabral, Arquivo Nacional de Torre do Tombo, PT/TT/GAV/16/3/58.
Alberto de Carvalho, Os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, segunda memória, Lisboa, Typographia do Commércio, 1903.
Exposição permanente da Casa do Brasil, Santarém
Panteão Nacional | Panteão Nacional (panteaonacional.gov.pt)
Pó do Panteão dos Cabrais nos Açores - Jornal Notícias da Covilhã (noticiasdacovilha.pt)
Imagens
Biblioteca Nacional de Portugal
Pedro Álvares Cabral descobre o Brazil, Maurício José do Carmo Sendim, Lisboa, of. Lith de M. e I Luiz, Colecção de memórias relativas às façanhas dos portuguezes na India (…), 1839.
Pedro Álvares Cabral, senhor de Belmonte, alcaide mór d´Azurara, descobridor do Brazil (…), José da Cunha Taborda, J. Abrantes (h«grav.), Lisboa, Philopatrica, Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, entre 1806 e 1817.
O desembarque dos portugueses no Brasil ao ser descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500, Alfredo Roque Gameiro, Roque Gameiro e Conc. Silva, Lisboa: José Bastos; lith da Comp. Nac. Editora, ca 1900.
Tumulo de Pedro Álvares Cabral em Belmonte e panteão dos Cabrais em Belmonte com carneiro da família
Belmonte – a terra natal de Pedro Álvares Cabral – Who Trips
Cenotáfio de Pedro Álvares Cabral no Panteão Nacional
Ficheiro:Pedro Alvares Cabral Cenotáfio.png – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Túmulo de Pedro Álvares Cabral em Santarém, após primeira intervenção na capela, Alberto de Carvalho, Os restos mortais de Pedro Álvares Cabral, descobridor do Brasil, segunda memória, Lisboa, Typographia do Commércio, 1903.
Igreja de Nossa Senhora da Graça, em Santerém
João FCF
Igreja da Graça (Santarém) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)