Câmara de Alcácer cortava nos ordenados para pagar dívidas
Para além de serem reduzidos, os vencimentos também não eram pagos atempadamente e o município tinha um vasto rol de contas atrasadas para saldar.
Pode pensar-se que a redução dos ordenados dos funcionários públicos é uma invenção dos tempos modernos, recurso de alguns governos em tempo de crise. Pois, não é assim e, até um concelho rural como Alcácer do Sal já impôs cortes salariais aos trabalhadores, quando a penúria das contas públicas a isso obrigou. Duvido que tenha sido caso único no país, mas naquela vila alentejana a ideia saiu da cabeça de João Rodrigues da Cunha Aragão de Mascarenhas que, coincidência ou não, cerca de uma década depois, chegaria a deputado da nação.
Corria novembro de 1852 e aquele município preparava o orçamento para o ano seguinte. Como em ocasiões anteriores, as receitas não chegavam para cobrir as despesas previstas, o que não coibia o conselho municipal de aprovar as contas e ficar a dever as verbas em falta.
O presidente em exercício era Domingos Silvestre Branco. Entre os vogais daquele órgão estavam João da Costa Passos, António José Gonçalves Branco, Francisco de Paula Leite (ausente nesta reunião), João José Rodeia, Francisco José de Carvalho e João Rodrigues da Cunha Aragão Mascarenhas. Foi este que tocou com o dedo na ferida: “não se pode contar com toda a receita em orçamento, porque há algumas dívidas muito custosas de efetuar a sua receção”.
Aliás, a receita não chegaria ainda que fossem cobrados todos os "calotes" que a população tinha para com a câmara, nomeadamente referentes a taxas e licenças, o que tornava impossível que se pudesse fazer obras de grande vulto, que as necessidades públicas reclamavam “incessantemente”, frisou.
Assim sendo, propôs que, “ou se lançava uma contribuição para acorrer às despesas, ou se reduzia os ordenados a todos os empregados” municipais.
Desconhece-se se houve alguma discussão sobre esta decisão polémica, mas o certo é que a mesma foi aprovada por unanimidade.
É preciso esclarecer que, naquele tempo, o município ainda não era o grande empregador que é hoje. Mesmo assim, o escrivão da câmara, os médicos, o cirurgião e até o administrador do concelho viram os seus salários reduzidos. Ao mesmo tempo, anulou-se a verba para pagar a um zelador e a um amanuense – uma espécie de escriturário público – por se entender não haver necessidade destes profissionais. “Por não haver meios”, foram ainda cancelados os gastos com mobília.
A juntar a todos estes cortes, deliberou-se lançar contribuições indiretas – já habituais em anos anteriores – sobre todos os carros e carretas em circulação e sobre os produtos vendidos a retalho no concelho: carne fresca, vinho e peixe, à exceção do bacalhau.
Não obstante, em 1853 – ano em que vigorou este orçamento restritivo, a câmara Municipal devia o primeiro semestre de ordenados aos seus empregados – os mesmos que tiveram os vencimentos reduzidos. Em falta estava também o azeite aos que acendiam as candeias públicas; a limpeza das ruas; os ordenados das amas dos expostos; o vencimento da rodeira e o próprio azeite para a roda dos expostos.
Intrigante é pensar como terá a câmara conseguido superar estes tão grandes constrangimentos financeiros, uma vez que os outros livros de atas arderam no incêndio que destruiu o arquivo municipal em 1965. Sabe-se, no entanto, que até ao início do século XX, fizeram-se obras de vulto, como o novo edifício dos paços do concelho, a cadeia da comarca e a continuação do aterro, que deu origem à avenida marginal.
À margem
“..As Câmaras Municipais podem, sem ofensa da lei, alterar, por meio dos seus orçamentos anuais, os ordenados dos empregados do Município, salva a aprovação dos respetivos Conselhos do Distrito”, pois nada impede a diminuição dos ordenados de todos os funcionários públicos, “porque não há a atender aos direitos que se suponham adquiridos por aqueles empregados e sim às necessidades e maior conveniência do serviço e às forças dos rendimentos municipais”. Isto comunicava sua Majestade, a Rainha D. Maria II, em junho de 1845, na sua versão da teoria que defende ser preciso cortar a alguns para que se consiga pagar a todos e atender às superiores despesas do Estado. A determinação vem em Diário do Governo, assinada por José Bernardo da Silva Cabral, irmão de António Bernardo da Costa Cabral. Em conjunto, formaram o denominado “governo dos Cabrais” que, com o apoio da monarca, administrou o País entre 1842 e 1846. Tinham como missão controlar o défice público, mas fizeram-no sobretudo aumentando a carga fiscal – onde é que já ouvimos isto? – ao mesmo tempo que colecionaram honrarias e riqueza pessoal. O conjunto de medidas que adotaram em várias áreas suscitaram a ira popular, que os derrubou no que ficou para a história como a Revolta da Maria da Fonte.
Mas isso é outra história…
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Já antes falei de João Rodrigues da Cunha Aragão Mascarenhas, e de como, enquanto juiz, condenou um dos mais dotados tribunos que o parlamento já conheceu, por ter morto a mulher, numa versão real da tragédia da rua das Flores.
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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/JJR/02/01/001
PT/AHMALCS/CMALCS/EXTERNO/01/06/001
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0074
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0070
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/02/01/0081
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cabralismo
https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=779662