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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Canal de rega era o único caminho para a Comporta

canal de rega.jpg

 

 

Todos os anos morria alguém, mas não havia alternativa. A circulação fazia-se pelas bermas do canal de rega, até o correio e o abastecimento de alimentos, pois a vasta área entre Alcácer do Sal e a Comporta não possuía qualquer caminho circulável por automóvel.

 

 

A denominada “estrada da Comporta”, que hoje se enche de carros topo de gama com veraneantes em busca do paraíso, é muito recente. Há 50 anos, o único acesso àquela zona costeira eram as bermas do canal de rega, onde todos os anos morriam alguns dos muitos que, de noite ou de dia, a pé, de bicicleta ou motorizada faziam o percurso, hoje usado como trilho turístico e que então era o único possível entre Alcáccomporta - monografia 1945.GIFer do Sal e a costa.
Nesta área de 400 km2, na margem esquerda do rio Sado, habitavam cerca de cinco mil pessoas, mas não existia qualquer caminho publico transitável por automóvel. Em 1969, numa das várias exposições ao governo, o então presidente da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, Carlos Xavier do Amaral dizia que estas eram “terras esquecidas pela civilização”, não distantes, portanto da imagem de “África metropolitana” que a Comporta teve durante muito tempo.

cais da comporta - monografia 1945.GIF

 

Com a construção, nas duas décadas anteriores, dos canais de rega que levavam a água necessária à agricultura, tinham crescido grandes extensões de arrozal, onde trabalhavam mais de três mil pessoas por campanha.
As condições de acesso, no entanto, continuavam longe de ser ideais. Em vez das areias soltas e escaldantes de antes, quem circulava entre a zona costeira e Alcácer, tinha à disposição as bermas do canal de rega, embora se tenha tentado proibir esse circuito, para evitar mais mortes.

comporta 5.GIF

 

Essa tentativa deu origem a uma petição com mais de 1300 assinaturas onde se pedia encarecidamente um recuo nessa intenção. “Sem estrada e proibidos de usar o canal, as pessoas dos montes e lugares entre Casas Novas e Comporta receiam ficar isoladas, sem qualquer meio de comunicação, transporte, abastecimento e contacto”, com a sede de concelho, queixam-se os peticionários. Já que até o carteiro e o guarda-fios, que consertava as avarias telefónicas, se deslocavam pelas margens do canal de rega, de motorizada, e era também assim que se fazia o abastecimento de carne e outros bens.
Carlos Xavier do Amaral lamentava que a falta de estrada limitasse o desenvolvimento de toda aquela área, onde se situavam os terrenos mais pobres da região e que permaneciam incultos, porque nem os madeireiros ali queriam comprar o que quer que fosse, não tendo depois forma de o transportar. Referia o fornecimento de produtos e equipamento para a cultura do arroz que se fazia na Comporta como “dramático”, o que explicava que não se atingissem ainda maiores valores de produção e justificava a “ansia de progresso” que fervia no peito de todos quantos “mourejavam por aquelas bandas”.

estrada para troia.jpg

 

A via, com cerca de 28 quilómetros, demorou mais de uma década a ser executada. Começou timidamente em 1960, como estrada municipal, estreita e curta. Cinco anos depois, apenas se tinha pavimentado cerca de um quilómetro e deu-se início a fundações e pavimentação de outro troço, com pouco mais de 3 mil metros. Depois avançou-se até à fábrica de concentrado de tomate entretanto construída. A inauguração só teve lugar em 1973, com todas as formalidades e uma grade festa, organizada pela família Espírito Santo, que já era detentora da Herdade da Comporta desde 1958.
Tristemente, as mortes não cessaram. Acontecem agora, a altas velocidades, na tal estrada, batizada EN 253*.

À margem
Foi há um século que a Comporta começou a alterar a imagem que dela se conhecia. O denominado Paul da Comporta era uma zona insalubre, com terras incultas e alagadas, propícias a febres e onde só residiam pescadores e quem era obrigado a ali trabalhar, como os escravos que o Marquês de Pombal trouxe para labutar na agricultura por alegadamente serem mais resistentes à doença, mas que também pereceram, ou os degredados, condenados a ali cumprir pena. Curiosamente, a cultura do arroz, que tão má fama tinha em outros pontos do País, vista como pestilenta, teve, no concelho de Alcácer do Sal, o condão de atenuar a tendência natural dos terrenos pantanosos e das antigas salinas convertidas em canteiros de arroz, embora a persistência de malária fosse realmente impressionante na população até meados do século XX.
Quem podia prever que a Comporta se iria transformar no êxito turístico que é hoje, quando, em 1826, foi decretado que se passaria a chamar Vila Nova da Regente? O topónimo não vingou, mas provavelmente seria mais adequado ao atual usufruto do local.
Mas isso é outra história…
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*Nesta imagem a EN353-1 de acesso a Tróia.

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Já aqui antes escrevi sobre a quando a Comporta era uma espécie de África metropolitana onde ninguém queria ir.

 

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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
EN 253 – Alcácer do Sal - Comporta
PT/AHMALCS/CMALCS/CAMARA/10/03/01/004

Correspondência
Gabinete de Apoio à Presidência

Fundo JF Santiago
Jornal «O Setubalense», suplemento de 4 de Agosto de 1934.

Controlo populacional e erradicação da malária; de Vítor Faustino, citando Dias 2001, 90. Disponível em https://epdf.pub/a-circulaao-do-conhecimento-medicina-redes-e-imperios.html

Gazeta de Lisboa nº152 - 1826

https://books.google.pt/books?id=qOsvAAAAYAAJ&pg=PA1214&lpg=PA1214&dq=%22paul+da+comporta%22&source=bl&ots=fG2WR8qspI&sig=ACfU3U3DqS7-qfOdWRqe95MUuGMrlmi4gg&hl=pt-PT&sa=X&ved=2ahUKEwjtsc-O4qzjAhVQ-YUKHaApAp8Q6AEwAnoECAcQAQ#v=onepage&q=%22paul%20da%20comporta%22&f=false

Arquivo Parlamentar da Assembleia da República
ahpweb.parlamento.pt

Controlo populacional e erradicação da malária; de Vítor Faustino, citando Dias 2001, 90. Disponível em https://epdf.pub/a-circulaao-do-conhecimento-medicina-redes-e-imperios.html

Imagens

Arquivo Pessoal de Fernando Horta em:
https://www.sabado.pt/vida/detalhe/a-incrivel-historia-da-proprietaria-do-restaurante-dona-bia-na-comporta

http://www.herdadedacomporta.pt/pt/gca/index.php?id=14

http://maiscomporta.blogspot.com
https://www.jornalmapa.pt/2016/03/30/8283/

https://www.facebook.com/fundacaohdc/photos/?ref=page_internal

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