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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Cardápio de estranhos impostos de A a Z (1)

 

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Os impostos são uma realidade milenar a que poucos produtos e atividades conseguiram escapar ao longo dos séculos. Analisar as listas de bens taxados numa determinada época, mostra-nos os produtos mais importantes – alguns hoje desconhecidos – e as particularidades de cada região. Mostra também que o longo braço do fisco é muito criativo quanto à forma de angariar dinheiro.

 

A cobrança de impostos está documentada há pelo menos cinco mil anos e constitui uma das principais fontes de receita para os senhores da terra, os Estados e os municípios que, espera-se, utilizam essas verbas para algum fim específico e atividades de bem comum, que as populações nem sempre compreendem e com as quais, por vezes, discordam. Ora, este era um expediente também muito utilizado a nível local e é extraordinário o que se aprende sobre a vida de uma determinada época apenas analisando a forma como o fisco estende os seus tentáculos aos rendimentos dos cidadãos.

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Tal como hoje, em meados do século XIX, os municípios lançavam as suas contribuições indiretas e diretas, estas últimas incidindo sobre os bens mais transacionados ou com valor especialmente relevante em cada concelho.

Mostrando bem o que era essencial aos portugueses de então, de Norte a Sul, o comum era taxar o vinho e a aguardente (sobretudo), mas também a cerveja e a jeropiga; a carne e o peixe nas suas diversas formas, o sal, o azeite, bem como os cereais e o pão.

Concelhos havia que se abstinham de fustigar o povo com taxação desnecessária, enquanto outros, com muita criatividade e aproveitando um leque vasto de matérias em circulação, tentavam angariar o máximo. É sobretudo nestes que saltam à vista as especificidades regionais e onde encontramos muitos produtos hoje totalmente esquecidos e cuja utilidade é difícil de descortinar à luz dos nossos dias.

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Espreitemos então os impostos lançados nos longínquos anos de 1865-1866…

No Algarve, por exemplo, Faro e Olhão destacam-se pelo completo cardápio de substâncias e bens alvo de tributos mais ou menos elevados.

No primeiro caso, taxava-se de A[ço] a Z[uarte] (um tecido semelhante à ganga)), passando por elementos tão distintos como alcatrão ou alfazema; chocolate ou drogas de botica; bezerros da Flandes ou grós de Nápoles (uma seda encorpada). O mesmo para Olhão - de A[bóboras], a Z[arcão] – taxando até os copos de água, a 5 reis cada dois!

Neste município algarvio, batatas redondas e compridas tinham diferente imposto, que alcançava, igualmente, a marmelada, o mel, a briche e a baetilha (20 reis o metro), as botinas de duraque (tudo têxteis hoje menos comuns); a par de um conjunto de substâncias coloridas, como o verde imperial, o vermelho fino, o amarelo inglês, o azul ultramar ou o anil, dez reis a cada meio quilo. Portimão seguia a mesma batuta, com destaque para os aromas fortes da canela, do chá e do chocolate, da erva-doce, do tabaco e do rapé, bem cheirosos e bem pagos!

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Ali também se cobrava um real por cada quilo de atum salgado, peixe escasso nestas listagens (mas também presente em Constância, por exemplo), tal como o congro, taxado em Castro d’Aire, em contraste com a sardinha, muito visada pelo fisco municipal e frequentemente mencionada de forma expressa, destacada dos outros produtos do mar, reforçando a sua grande importância na alimentação dos portugueses.

Na Madeira, a par do pagamento de 2 reis em cada o boião de gingerbeer, produto raro e apenas na mira do fisco em Ponta do Sol, São Vicente e Porto Moniz. No Machico surgem taxas sobre uns “vinhos artificiais” cujo teor é difícil de perceber, tal como o vinho cozido, que pagava 100 reis por carga, em Almeida, na Beira Alta.

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Já Leiria, demonstrando um certo cosmopolitismo, entre outras bebidas, taxava as botijas de genebra, os vinhos do Porto e da Madeira.

Igual sensação para Ponta Delgada, que cobrava meio real em cada pé quadrado de tabuado da América.

Percebe-se que, enquanto no Sul é comum encontrar impostos lançados sobre os figos secos, o mesmo suceda com as castanhas, no norte e centro. É o caso do concelho de Pombal, que cobrava 40 reis por cada saca.

Elvas, no Alentejo, provavelmente por se situar na fronteira, tributava mais de 30 dezenas de produtos, com grande destaque para a variedade de medidas de queijos e os peixes do rio. Em Oliveira de Frades pagava-se 40 reis em cada cesta de queijo da serra e 100 nos queijos da Lapa.

 Em Vila Real, a arraia, o polvo e a lampreia pagavam, assim como o tremoço. Já, em Arcos de Valdevez, a fressura (vísceras) rendia 200 reis para o erário público, o mesmo que uma dúzia de fogo de ar, produto cuja taxa descia para 120 reis, em Coura, Melgaço e Ponte da Barca, município onde se referenciava o vinho de maçã.

À margem

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Enquanto alguns concelhos faziam incidir os impostos nos produtos, outros, como é o caso de Pombal, taxavam diferentemente cada tipo de comerciante. Assim, cada tenda de fazendas brancas e de lã, sola ou courame pagava 60 reis; mas as de quinquilharia só despendiam 10. Em Castro d’Aire, São João da Pesqueira e Mangualde eram ainda mais específicos, distinguindo um infindável leque de vendedores, dos trapeiros, aos de tamancos; das obras de ferro e lata aos doces; das ferragens à retrós; das cestas e açafates às escudelas (tijelas) de pau; do açúcar e mais géneros coloniais, aos bodegueiros; dos fatos feitos e sombreireiros, aos violeiros e caldeireiros; dos esteireiros, aos vendedores de fósforos.

O mesmo acontecia em Ferreira do Zêzere, onde pagam as tendas de borel, ourives e solas e chapéus, assim como os bufarinheiros e os bacalhoeiros que quisessem montar arraial em feiras e mercados… Nada nem ninguém estava a salvo da abrangente mão do fisco.

Que o digam os pequenos produtores de inhame da ilha de São Jorge, nos Açores. Embora considerado alimento de escravos e pobres, passaria a pagar o dízimo, o que resultou num motim popular que eclodiu em 1894 e teve episódios nos anos seguintes, sempre que o arrematante do imposto tentava fazer os faltosos pagarem, obrigando-os a carregar o inhame às costas, em condições muito penosas, desde as fajãs até ao local de cobrança. Foi apenas uma das revoltas que a fome amassou.

Mas isso são outras histórias…

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Este tema tem sequela, aqui: Cardápio de estranhos impostos de A a Z (2) - O sal da história

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Nota 1: não se pretende aqui fazer uma lista exaustiva de produtos alvo de impostos em cada um dos municípios do País, mas sim destacar as especificidades regionais e as particularidades da época.

Nota 2: as imagens são meramente exemplificativas do ambiente de feiras e mercados.

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Fontes

Diário do Governo, 04.07.1871

https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolta_dos_inhames

 

Imagens

Illustração Portugueza

16.11.1903, 30.11.1906, 21.12.1903, 18.01.1904, 26.01.1904, 04.06.1904, 27.06.1904.

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