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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Como duas pequenas chinesas fizeram tremer a jovem república portuguesa

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O povo saiu à rua numa fúria difícil de dominar. Tudo por causa daquelas estranhas mulheres que tiravam bichos dos olhos e prometiam dar a luz aos que viviam na escuridão.

 

ilustracao port 7.JPGComícios; manifestações; exposições ao governo, ao parlamento e ao chefe de Estado; debates políticos; tiroteios; explosões; apedrejamentos; milhares nas ruas; centenas detidos; dezenas feridos e um morto. Treze meses apenas sobre a implantação da República, Lisboa e depois outros pontos de País foram assolados por uma tal revolta popular, que o novo sistema político e os seus protagonistas tremeram na base. E o que esteve na origem de tal tumulto? Não foram os realistas que ainda brandiam armas no Norte e esgrimiam argumentos nos tribunais que os julgavam por conspiração…não! Foram duas jovens e pequenas mulheres que, chegadas de Xangai, prometiam dar visão aos cegos e, por pouco, não amotinavam todo um Portugal à beira de um ataque de nervos.

As “chinesas milagrosas”, Ajus, de 31 anos, e Joe, de 29, teriam passado por várias nações, nomeadamente na Europa. Entraram em terras lusas pelo Sul, provenientes de Espanha, para depois se instalarem no hotel Algarve, na rua da Padaria, na Capital. Aí, conta a imprensa da época, prometiam curar males da vista.

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A sua técnica passava pela massagem das pálpebras com uns “pauzinhos”, com que depois, pasme-se, retiravam dos olhos – “como quem tira burriés de dentro da casca com um alfinete” - uma espécie de larvas que a todos causavam espanto.

Por efetivo poder de tal método ou mera sugestão, foram vários os que garantiram ter “visto a luz” após a intervenção das chinesas que assim puseram fim a anos de trevas e outras maleitas oftálmicas. Os relatos do sucesso avolumaram a procura, com filas de pessoas que, vindas de longe e de perto, se aglomeravam junto ao modestíssimo hotel, na ansia de serem vistas pelas “chinesas dos bichos”.

Ora, tal alarde não podia ser aceite em tempos tão frenéticos como aqueles e, por isso, o então Governador Civil de Lisboa proibiu tais operações. Como essa medida não atenuou a demanda, mandou recolher as senhoras e respetiva família, levando-as até ao comboio que, por sua vez, as fez transportar para lá da fronteira com o País vizinho. Aí, ao que foi noticiado, regressaram à sua atividade “clínica”, o que as levaria a ser novamente expulsas.

O problema, no entanto, estava apenas a começar, porque o “sequestro” das misteriosas orientais fez vir ao de cima uma ira popular imprevista. De repente, as chinesas pareciam representar toda uma promessa de um futuro melhor que a recém experimentada República tardava em cumprir.

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Num ápice, as faces desse novo poder eram os símbolos desse ultraje, negando ao povo os direitos e as regalias com que lhes haviam acenado. E as multidões viraram-se contra esse domínio: por pouco não lincharam o herói republicano Machado dos Santos, que tentava apelar a um pouco de serenidade; injuriavam a novíssima Guarda Nacional Republicana, que os subjugava em vez de defender; acusavam o Governador Civil e os deputados* de expulsar as chinesas para proteger a sua classe; argumentavam que os poderosos protegiam os da sua estirpe, criticando não terem igual procedimento com a “Pitonisa” do Chiado, a vidente a que a classe alta recorria**.

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Em suma, a populaça acusava a República de todos os seus males.

E esse grito, quer fosse espontâneo, pela quebra da esperança; quer fosse instrumentalizado pelos numerosos inimigos do recente regime - que pululavam a cada insucesso ou recuo da nova ordem - acabaria por esmorecer, mercê da repressão policial e militar - de agosto de 1911 a julho de 1912 serão 2. 383 os presos políticos - mas também pelo surgimento de outros problemas mais prementes, como a sucessão de greves e a acelerada cadência de novos governos que se instalou neste período.

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À margem

antonio machado dos santos.jpgMachado dos Santos, considerado o pai do novo sistema político que em 5 de outubro de 1910 passou a vigorar em Portugal, fez uso do estatuto de herói republicano e da sua reconhecida coragem para, no dia 26 de novembro de 1912, tentar acalmar os ânimos durante um comício em torno da questão das chinesas que reuniu vários milhares de pessoas,no Rossio.

0001_Mbrasileira balas.jpgNas palavras da imprensa da época, foi “recebido hostilmente” pela multidão, tendo que se refugiar na “loja das águas”, só dali saindo vivo pela intervenção de uns marinheiros que ali se encontravam e porque foi resgatado pela GNR.

Este “salvamento” enfureceu a turba, que tentou destruir o estabelecimento e acabaria por se envolver com as forças de segurança num aceso confronto, com tiroteio à porta do café A Brasileira, curiosamente,  inaugurado nesse mesmo ano e que viu as suas montras serem perfuradas por balas. O emblemático café sobreviveria até aos anos 60, mas Machado dos Santos pereceria uma década depois, vítima da "camioneta fantasma" que, na noite sangrenta de 19 de outubro de 1921, ceifou a vida a vários símbolos da Primeira República, em resultado de uma revolta ironicamente iniciada por marinheiros.

Mas isso é outra história…

 

*Francisco Eusébio Leão, à época Governador Civil de Lisboa, era médico de formação e profissão, assim como o eram 22 por cento dos deputados eleitos à Assembleia Constituinte, de 28 de maio de 1911.

**Madame Broillard, de cujas proezas já falei, aqui.

 

Fontes

Hemeroteca Digital de Lisboa

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/

Illustração Portugueza

Nº 302, II Série – 4 dez 1911

O Occidente

Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro

34º ano, XXXIV, nº 185 – 30 nov 1911

 

A. Gonçalves Guimarães, O caso das chinesas curandeiras de Lisboa que queriam pôr os cegos a ver no primeiro ano da República Portuguesa, em Zhongguo Yanjiu - Revista de estudos chineses, nº 7, Instituto Português de Sinologia, Lisboa/Porto 2011, disponível em www.uc.pt/en/feuc/carmen/download_files/artigos.../1097_1097__RevChineses-1.pdf

 

http://maltez.info/respublica/portugalpolitico/acontecimentos/1911.htm

 

 http://www.portugal1914.org/portal/pt/historia/biografias/item/7526-santos-antonio-maria-de-azevedo-machado-1875-1921

 

 

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