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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Como uma revolta popular libertou todo o país

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A vitória dos pescadores pobres de Olhão sobre os franceses inspirou a insurreição do resto de País. Não contentes, os olhanenses ainda atravessaram o atlântico, num feito marítimo único que lhes valeu a independência e o reconhecimento real.

 

Como é que um exército pode sair derrotado perante um punhado de homens, sem preparação ou treino? O folclore nacional conta diversos episódios deste género, mas a revolta de Olhão será talvez o mais expressivo exemplo de como tudo pode a força dos que sabem que a razão está do seu lado.

Pode dar o mote para que todo um país expulse o inimigo. Pode atravessar o oceano para levar a boa nova e trazer a independência. E pode tanto, porque não se trata do imaginário ornamentado pelo passar dos anos, mas sim da mais pura realidade, que aconteceu naquele mês de junho de 1808, numa pobre aldeia do litoral algarvio onde, à época, viviam apenas homens e mulheres com vidas curtidas pela agreste lida do mar.

 

Capturarfranceses.GIFA corte Portuguesa embarcou para o Brasil a 29 de novembro. Já as tropas francesas tinham entrado no País, tomando conta de todo o dócil território. Ora, logo aí Olhão foi diferente “olhando sempre para aquela nação francesa com olhos de veneno e má vontade”, como foi notado pelos recém-chegados. Os olhanenses tinham razões para tal: não estavam habituados a ter tutela e a vivência dura que levavam tornou-se praticamente insuportável, tamanho o peso dos impostos a que o novo poder obrigava.

 

 

Olhão era um rastilho à espera de se lhe chegar fogo.

 

A centelha foi acesa a 12 de junho.  João Rosa, o escrivão do Compromisso Marítimo de Olhão*, num ato de desafio aos opressores, destapou as armas de Portugal que havia tempo tinham sido obrigados a esconder na igreja onde assistiam à missa. A notícia correu e logo “todas as embarcações na praia e em terra levantaram a bandeira portuguesa”. Quatro dias depois, José Lopes de Sousa, governador de Vila Real, destituído por não se vergar ao jugo estrangeiro, rasgaria os novos editais franceses e instigaria os homens a segui-lo. “Prontos e mais que prontos” para “morrer e dar até à última pinga de sangue”, responderam logo os que o ouviram e correram pelas ruas, chamando os demais.

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Uns “deitaram-se ao mar (…) sem olharem a mais nada”, buscando peças de artilharia e munições que se encontravam nas ilhas, outros pegaram “em armas que havia na terra, que eram forcados, fisgas, besteiros e paus, espadas velhas, espadins, paus, pedras, tanto faziam homens como mulheres, rapazes e raparigas, até mesmo o pároco da igreja e os padres”.

 

Nos dias seguintes, procuraram apoio junto da armada inglesa, ao largo da costa, e em Ayamonte, tendo conseguido aprisionar três xavecos** franceses e os seus ocupantes.

Com isso reuniram mais armas e impediram o reforço do contingente inimigo em Faro, que logo pediu reforços a Tavira e Vila Real.

“Nada disto lhes meteu medo ou abalo, antes lhes meteu mais ânimos de sorte”, pois que a improvisada força olhanense, feita de “uma gente maruja estranha a taes empresas, mas valorosos, a quem as mesmas mulheres davam o exemplo”, foi esperar estas tropas à Ponte de Quelfes, onde se deu o episódio mais dramático da contenda. Aos tiros seguiram-se perseguições, “em peleja, entre matos”, matando-se 18 franceses e ferindo-se dois. Do lado português houve apenas uma baixa, mas os franceses mataram mais dois rapazes, na sanha da retirada.

Foram dias extraordinários, mas também penosos, pois que de fora “não vinha pão nem nada” e os olhanenses, não podiam ir ao mar, pois pegavam em armas e velavam os caminhos, sem descanso. “Com todas estas necessidades que passámos, parecia que Deus Nosso Senhor nos mantinha”, conta o mesmo João da Rosa, escrivão do Compromisso Marítimo de Olhão, a quem se deve o relato mais vivo dos acontecimentos.

Vendo que a força não vergava os do lugar de Olhão, os franceses tentaram comprar a sua vontade, prometendo-lhes privilégios e isenções. Nada conseguiram.

Ameaçaram depois passar todos à espada e arrasar aquela terra, mas já era tarde: motivados pelo exemplo olhanense, também Faro e depois Tavira se sublevaram e outras localidades se seguiram. E com a ajuda dos algarvios, também o Alentejo se levantou contra os invasores e depois todo o País. Com auxilio das tropas inglesas, em setembro estava terminada a primeira invasão francesa.

O feito dos marítimos olhanenses, no entanto, não se ficou por aqui. Era preciso ir mais longe, muito mais longe. Mais propriamente ao outro lado do Atlântico.

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A 6 de julho abalava de Olhão o caíque Bom Sucesso, insignificante embarcação de pesca desadequada para tão grande viagem, com uma tripulação de 18 homens, também eles estreantes em tais empresas. Sem instrumentos de navegação, guiando-se apenas por cartas marítimas incompletas, as correntes e as estrelas, o piloto Manuel de Oliveira Nobre conseguiu fazer aportar ao Rio de Janeiro todos sãos e salvos, a 22 de setembro.

Mais do que o propósito formal da viagem: levar a boa nova de se ter o país livrado dos invasores, os olhanenses foram buscar a independência que há muito ansiavam e que tanto lutaram por conseguir. D. João VI concedeu a Olhão o estatuto de vila da restauração, com “todos os privilégios, liberdades, franquezas, honras e isenções de que gozam as vilas mais notáveis do reino”, atribuindo igualmente tenças e honrarias – nomeadamente medalhas como a da foto - a todos os tripulantes do “Bom Sucesso”.

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 Num século apenas, o pequeno aglomerado de cabanas era elevado à categoria de vila.

Por uma vez, tal distinção não se deveu a uma oca atitude majestática ou à paga pelos feitos dos nobres do local. Antes, foi conquistada a pulso, pela arraia miúda, protagonista de um jogo de emancipação de que habitualmente fica alheada.

Eram novos tempos, os que se avizinhavam.

 

 

À margem

António de Gouveia. Terá sido ele a única baixa da força olhanense no combate ocorrido na Ponte de Quelfes. A tradição oral diz que este era um ancião, com perto de cem anos, admirado e respeitado por toda a comunidade, onde já teria desempenhado importantes funções, como ser juiz do Compromisso Marítimo de Olhão aquando da construção da sede desta instituição, concluída em 1771 e que, com muito esforço, consolidava a autonomia profissional daquelas gentes do mar em relação a Faro. Seria, pois, uma figura proeminente na terra, que à época tinha já a alcunha de pai-avô, pela idade avançada e pela grande estima e reverência que inspirava. Estranho é que, sendo tão reconhecido, sobre ele não haja uma palavra nos dois relatos mais vivos da revolta, os de João da Rosa e de José Lopes de Sousa, que assistiram e participaram nos acontecimentos. O assento de óbito de António de Gouveia também não ajuda a perceber quem foi este homem, informando apenas que era casado com Joana Gomes e que morreu “de desgraça”, a 18 de junho de 1808, precisamente o dia da batalha da ponte de Quelfes. Mais três pessoas morreram de igual “causa” e na mesma data, dois menores e outro homem, o que poderá contrariar a versão oficial de ter sido apenas António de Gouveia o “mártir” da contenda. Certo é que o seu enterro mobilizou toda a comunidade e até autoridades exteriores. Certo também é que o valor de António de Gouveia era de tal forma apreciado que os seus parentes adotaram o sobrenome Pai-avô, que prevalece até à atualidade, como até à atualidade não se desvaneceu o orgulho das gentes de Olhão neste este seu corajoso filho.

Mas isso é outra história…

 

*Instituição criada 1765, com o fim de apoiar os pescadores e as suas famílias. A classe piscatória contribuía para a Confraria Real do Corpo Santo dos Mareantes ou Compromisso Marítimo de Olhão e deste recebia assistência médica e social.

**Pequena embarcação com três mastros e vela latina.

 

 

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As imagens presentes são meramente ilustrativas, não correspondendo, em concreto, aos acontecimentos relatados.

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Fontes

Biblioteca Nacional Digital

www.purl.pt

Declaração da Revolta principiada no dia 16 de junho de 1808 no lugar de Olhão pelo Governador da Praça de Villa Real de Santo António, José Lopes de Sousa, para a restauração de Portugal; 26 de julho 1808.

Joaquim Alberto Iria Jor. - Do Algarve ao Brasil no caíque de pesca “Bom sucesso”; Lisboa, 1936.

Representação ou carta enviada pela Câmara desta cidade de Faro ao Rio de Janeiro a S.A.R o Príncipe Regente, nosso senhor – Faro 1808.

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António Rosa Mendes – O levantamento popular de Olhão contra os franceses – Promontoria; ano 6, nº 6, 2008 – Universidade do Algarve.

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http://www.olhao.web.pt

Antero Nobre – Heróis olhanenses de 1808 – Associação de Valorização Cultural e Ambiental de Olhão,  2008

Antero Nobre - História Breve da Vila de Olhão da Restauração - Associação de Valorização Cultural e Ambiental de Olhão,  2008

O manuscrito de João Rosa – edição atualizada e anotada - Associação de Valorização Cultural e Ambiental de Olhão,  2008.

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Arquivo Nacional da Torre do Tombo

www.tombo.pt

Registos Paroquiais – Olhão

 

www.priberam.pt

 

Imagens

Biblioteca Nacional Digital

www.purl.pt

http://www.olhao.web.pt

http://caxinas-a-freguesia.blogs.sapo.pt/18588.html

http://historia-portugal.blogspot.pt/2013/05/as-invasoes-francesas-guerra-peninsular.html

 

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