Consequências de uma noite de São João em Alcácer do Sal
O autor da cómica peça de teatro era um funcionário das finanças que terá passado por Alcácer do Sal em 1870 e parece ter-se impressionado com as danças e cantares que enchiam as ruas por altura dos Santos Populares.
Uma história de amor contada em tom descomprometido, com humor. Assim é Consequências de uma noite de São João em Alcácer do Sal, peça de teatro publicada em 1870 e que retrata a sociedade da época. O grande mistério é a ligação do autor a esta cidade alentejana, já que não há testemunhos de Francisco António de Matos ali ter morado ou ser aparentado com qualquer um dos Matos que, no final do século XIX, ali viviam.
A ação decorre entre o “passeio público” – atual jardim público – e a zona da Parvoíce – extremo oposto da então vila - Cabo de São Pedro - onde se realizariam os melhores bailes de São João. As personagens são Damião Barroso, um antigo comerciante convertido em lavrador, que divide o seu tempo entre a casa de Lisboa e a herdade nos arredores de Alcácer do Sal; acompanhado pela a sua filha, Cecília, moça casadoira, pura, uma espécie de “trigo sem joio”, nas palavras do seu progenitor, que a quer bem casada, ascendendo socialmente dessa forma, porque dinheiro já tem.
Há dois pretendentes à sua mão: Fernando de Melo, um finório que tem em vista o dote da rapariga e, com falinhas mansas, mente, afirmando-se “quase doutor”. O outro é Ernesto da Cunha, amigo do primeiro. Este tem muitas vantagens, a começar por já ser doutor; estar apaixonado pela menina e ter ganho o coração de Cecília, faltando-lhe convencer o pai.
Os rivais foram de Setúbal para as danças de roda em Alcácer, com o intuito de resolver os seus problemas amorosos.
Espaço em cena ainda para os dois alentejanos, Tibúrcio e Anselmo, que são as vedetas dos momentos mais cómicos do texto, nomeadamente porque estão bêbados, como muitos outros, ainda hoje, nas noites de São João, em Alcácer do Sal. Anselmo é criado de Damião e, apesar do estado de embriaguez, é o primeiro a perceber a verdadeira natureza de Fernando, putativo noivo da sua jovem patroa.
A história gira em torno das conversas destes seis e de alguns momentos musicais, culminando com o triunfo do amor. Ernesto desmascara o amigo e concorrente; Damião aceita a decisão da filha e dá a sua mão em casamento a Ernesto da Cunha. No final, todos fazem as pazes e canta-se ao São João.
O enredo é escrito por um funcionário público que se aventurou em outras áreas, em especial no teatro: Francisco António de Mattos (1845-1902). Este senhor andou de terra em terra, ao sabor das vagas e colocações – um pouco como acontece hoje em dia com os professores. Em cada nova vila, tentava, com a “prata da casa”, criar uma sociedade teatral, onde desempenhava as funções que fossem necessárias, de ator a contrarregra; de autor a aderecista.
Poderá ter feito o mesmo em Alcácer do Sal, pois no ano em que escreveu “Consequências de uma noite de São João…” andou por ali, como atesta a sua participação no Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiras para 1870, em que anuncia Alcácer como a sua localização no momento.
Quem sabe se, um dia, o grupo cénico de uma das sociedades filarmónicas locais não recupera a peça de teatro e a leva à cena na cidade que inspirou o seu autor?..
À margem
Francisco António de Matos dinamizou e colaborou com diversas publicações de carácter jornalístico, literário e político, escreveu pelo menos um livro de contos, uma opereta e uma obra sobre a máquina fiscal, onde trabalhava.
A sua maior paixão, no entanto, parece ter sido o teatro, pois criou diversas peças, encenadas em Lisboa e Porto, mas também pela província. Elaborou ainda o dicionário corográfico de Portugal, onde compilou todas as localidades do país, que, de resto, conhecia de norte a sul.
Durante algum tempo foi secretário da empresa do Teatro dos Recreios, uma sala histórica de Lisboa totalmente demolida em 1887 para dar lugar à construção da Estação Ferroviária do Rossio (na imagem).
Mas isso é outra história...
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Os meus agradecimentos a Maria Antónia Lázaro, que me trouxe as “Consequências…” da Biblioteca Nacional.
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Já falei aqui de outros nomes menos conhecidos do teatro Português, como o primeiro figurinista, que revolucionou esta arte no nosso País, Carlos Cohen.
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Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal
Consequências de uma noite de S. João em Alcácer do Sal, de Francisco António de Matos, Tipografia de José Augusto Rocha, Setúbal, 1870.
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Índice de autores
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Indice/IndiceAutores/MATOS_FranciscoAntoniode.htm
Occidente – Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro
6º ano, volume VI, nº 168 – 21 ago. 1883
6º ano, volume VI, nº 171 – 21 set. 1883
Almanach de Lembranças Luso-Brazileiro para anno de 1870; Lisboa, Tipografia Franco-portuguesa, 1869. Disponível em:
https://archive.org/stream/almanachdelembr05unkngoog/almanachdelembr05unkngoog_djvu.txt
Sousa Bastos, Carteira do Artista – Apontamentos para a História do Theatro Portuguêz e Brazileiro, Lisboa, antiga Casa Bretrand, 1888. Disponível em https://archive.org/stream/carteiradoartist00sousuoft/carteiradoartist00sousuoft_djvu.txt
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Estacao_do_Rossio_station_Lisboa_Portugal_1886.JPG