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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Corrupção e desvio de dinheiro nas instituições públicas concelhias

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Sogro e genro “cozinharam” o desvio de fundos que acabou com a demissão de ambos, enquanto, na câmara, presidente e vereadores tiveram de devolver o dinheiro que também estava em falta nas contas municipais. No geral, as tarefas públicas eram desempenhadas de forma negligente e desorganizada.

O recebedor da comarca, o diretor dos correios e o escriturário do escrivão da fazenda foram demitidos por desfalque e incumprimento generalizado das suas obrigações. No mesmo período, presidente e vereadores da câmara são obrigados a repor o dinheiro em falta nas contas do município. Tudo isto aconteceu no período de apenas um ano (1865-1866), no aparentemente pacato concelho alentejano de Alcácer do Sal.

O primeiro alarme foi dado pela análise ao cofre da recebedoria da Comarca, onde existiam apenas 820$00 réis, provenientes das cobranças daquele mês de outubro, mas que era expectável que estivesse cheio, com perto de 13 contos de réis.

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É que o recebedor, Vicente Francisco Ribeiro, havia sido por diversas vezes “intimado a regularizar as transferências de fundos para as caixas centrais do Ministério da Fazenda, a fim de não conservar em seu poder avultados saldos, sem que se conseguissem resultados dessas diligências”.

Em resultado destas inconformidades, é demitido, cinco anos após ter sido nomeado, em despacho assinado pelo conhecido António Maria Fontes Pereira de Melo, que seria primeiro-ministro seis anos depois.

As explicações de Vicente Francisco Ribeiro fizeram as atenções das autoridades centrar-se no sogro, com quem contaria para entregar as verbas em falta nos cofres centrais.

Trata-se de António Pedro Cardoso Morte Certa, diretor dos correios da mesma vila de Alcácer do Sal.

Ora, com esta informação, um mês depois, o conselheiro diretor-geral dos correios e postas do reino também fazia publicar a sua demissão. Segundo alega, aquele responsável, em funções desde a criação daquela diretoria, em 1853, “não só se ausentava do seu emprego sem a devida licença, conservando a repartição a seu cargo na maior confusão e desordem possíveis”, mas também entendia que da “pressão exercida sobre o seu genro” – o ex-recebedor da comarca – “resultou o avultado alcance” – leia-se desfalque ou desvio de dinheiro – “em que este foi encontrado e em consequência do qual foi demitido”.

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Refira-se que António Pedro Cardoso Morte Certa também fazia parte de uma sociedade que ganhara a concessão para a cobrança do real da água* nos concelhos de Alcácer do Sal, Grândola, Santiago do Cacém e Sines, igualmente devedora de 1.700$000 réis aos cofres públicos.

O ex-diretor dos correios era, posteriormente, condenado a pagar o remanescente do valor total em falta nas suas contas e nas do genro.

Estando em parte incerta, tal responsabilidade seria assacada à administração da sua massa falida, acrescido de juros a 6 por cento.

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Poucos meses depois deste escândalo, publica-se um acórdão do Tribunal de Contas relativo às finanças da Câmara Municipal de Alcácer do Sal, mais propriamente ao exercício de 1862-63, nas quais se apontava uma discrepância da responsabilidade do tesoureiro, Manuel dos Reis Azedo.

Determinava-se que o presidente e os vereadores eram solidariamente devedores de 218$417 réis em falta.

Embora o município tenha impugnado tal decisão, alegando que a verba deveria passar para o ano seguinte como dívida ativa, o Tribunal de Contas não concordou e decidiu que tinham mesmo de “entrar com ela nos cofres municipais”.

Como se já não bastasse tamanhos embaraços, em novembro, é publicada nova demissão.

Desta vez, o visado é Agostinho Gomes de Almeida, despedido de escriturário do escrivão da fazenda naquele mesmo concelho, devido “à irregularidade do seu serviço e menosprezo com que tratava os interesses da fazenda”.

À margem

À parte de alguns nobres exemplos dos que se dignaram a conhecer melhor esta terra e as suas gentes, deixando-se conquistar, por cá se instalaram e criaram família - como este familiar de Sacadura Cabral ou o homem que ali anunciou a Implantação da República -  muitos eram os funcionários públicos que, ao serem colocados em Alcácer do Sal, tudo faziam para se manterem afastados, permanecendo de licença meses e meses a fio, para além de tentarem recolocação em destino mais apreciado.

Não seria fácil, por isso, conseguir pessoa “idónea, competente e afiançada com a fazenda nacional” que se mantivesse no cargo de recebedor da comarca de Alcácer do Sal, como pedia o anúncio publicado um mês após a saída de Vicente Francisco Ribeiro e, de resto, para outros cargos públicos como diretor dos correios, que obrigava a avultada caução.

Isso mesmo mostra a sucessão de nomes que por ali passaram após as demissões atrás relatadas e o pouco tempo nos cargos respetivos, o que também acontecia, genericamente, com os professores, os delegados dos procuradores régios ou os juízes, que se queixavam amargamente aos seus superiores da falta de segurança e condições de trabalho em Alcácer do Sal, nomeadamente da negligência grosseira dos guardas prisionais, que até deixavam entrar dinheiro e mulheres na cadeia.

Poucos, vindos de fora, permaneciam neste concelho extenso, com péssimos acessos e pior fama de insalubridade.

O mesmo se aplicava aos médicos do partido – posição equivalente à de delegado de saúde – cujos concursos para Alcácer do Sal e Torrão ficavam frequentemente desertos e também não se demoravam por estas bandas.

E, o que dizer dos sacerdotes da igreja católica? Obrigados a calcorrear estas terras extensas e despovoadas, à procura de almas para trazer ao seu rebanho. Tal era o sofrimento, que foram junto das cortes reivindicar meios de subsistência que os equiparassem aos outros servidores do Estado.

Mas isso é outra história...

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*O Real da Água era um imposto sobre bens de consumo. Inicialmente incidia sobre o vinho, mas foi depois alargado a outras bebidas e alimentos. Correspondia a um real por cada canada, arrátel ou outra unidade de medida em vigor, com o objetivo de angariar dinheiro para a construção ou a manutenção de canos, fontes, aquedutos e outras estruturas de abastecimento de água.

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Este artigo, com pequenas alterações, foi publicado na edição de setembro de 2024 do jornal Voz do Sado.

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Fontes

Diário do Governo

16.02.1864; 09.01.1865; 04.03.1865; 22.04.1865; 21.06.1865; 27.10.1865; 30.10.1865; 27.11.1865; 15.03.1866; 14.03.1866; 21.05.1866; 26.07.1866; 24.09.1866; 11.10. 1866; 24.12.1867; 04.12.1867; 17.12.1867; 18.03.1868; 05.09.1869.

Real de Água - Portugal, Dicionário Histórico (arqnet.pt)

Imagens

Arquivo Municipal de Alcácer do Sal

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