Crónica policial (2) – Fadistas de navalha em riste e gatunos enluvados
Lisboa, novembro de 1895
As últimas duas noites foram marcadas por tumultos provocados pela fadistagem. Os artistas demonstraram manejar as navalhas tão bem ou ainda melhor do que as guitarras que, por coincidência, estiveram na origem de um dos desacatos ocorridos.
Tudo começou com um despique em que os guitarristas Roberto José da Rocha e Agostinho Cruz quiseram, perante o público, mostrar qual dos dois melhor fazia tinir o próprio instrumento.
O encontro deu-se numa estudantina da qual fazem parte, na rua do Terreirinho à Fonte Santa, na Mouraria (na imagem).
Como não chegaram a consenso sobre quem era o mais talentoso e, para evitar o confronto, o Cruz abalou em direção a casa, mas o Rocha, ressabiado com a situação, perseguiu-o.
Foi junto ao albergue dos inválidos do trabalho* que se reencontraram e reiniciaram a discussão, tendo o provocador Rocha esbofeteado o rival. Com esta afronta, o Cunha não se podia ficar e respondeu ao soco, engalfinhando-se.
Com fracos argumentos nos punhos, o Rocha sacou da navalha e golpeou o outro no ventre, fugindo do local.
Os gritos do ferido alertaram as autoridades, que ali acorreram. Indo no encalço do agressor, acabaram por conseguir detê-lo.
Resultado: o Cunha foi atendido no Hospital da Estrela e reconduzido ao Hospital de São José, onde o seu estado é preocupante; ao passo que o Rocha foi remetido a juízo, para saber se fica preso ou sai para arranjar mais sarilhos.
Foi, aliás, outro grupo ligado ao fado que fez rebentar mais um distúrbio, desta vez, na rua da Barroca, ao bairro Alto (na imagem).
O Fadistinha e o Jayme Coelho – meteram-se com um grupo de soldados de cavalaria que por ali andavam e foi a grande confusão. Os militares desembainharam as espadas e os fadistas empunharam a suas navalhas.
Foi um Deus que nos acuda, enorme algazarra e confusão. Até que veio a polícia. Houve debandada geral, mas depois de alguma correria, alguns dos desordeiros ainda foram parar à esquadra, no meio de grande excitação de quem acompanhou a “procissão” policial.
Mal ou bem, esta arraia miúda que pulula nas cidades, acaba por sentir a mão da justiça, quando ultrapassa a barreira da lei. Os “gatunos enluvados”, por outro lado, por mais que façam por o merecer, parecem, aos olhos do povo, ficar sempre impunes.
Veja-se o caso do recebedor de Ceia, José Lopes Faia, que fugiu para o estrangeiro, deixando um buraco de 12 contos de reis nas contas à sua responsabilidade…e o que dizer do tesoureiro de Évora, do “ladrão da Junta de Crédito Público” e outros recebedores, cobradores, empregados de correio e demais funcionário que mexem em dinheiro que não é seu?
A maioria é apenas mudada de concelho para concelho, encobrindo-se o rasto de desfalques e protegendo-se os seus autores.
Isto, pelo menos, é o que contam os jornais.
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*O albergue dos inválidos do trabalho situava-se na rua Possidónio da Silva, nº 204, na freguesia de Prazeres, no concelho de Lisboa.
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As imagens são meramente ilustrativas
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Fontes
Biblioteca Nacional de Portugal, em linha
www.purl.pt
O Paiz, 06.11.1895
https://agc.sg.mai.gov.pt/details?id=574368
Imagens
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Estudantina
Ferreira da Cunha, PT/AMLSB/EFC/002158
Rua do Benformoso e rua do Terreirinho
Eduardo Portugal, PT/AMLSB/POR/057722
Rua da Barroca
Machado & Souza, PT/AMLSB/FAN/000806