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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

E o Tejo fez-se cemitério dos ares

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Duas vezes! Entre janeiro e fevereiro de 1943, por duas vezes, as águas do Tejo tingiram-se de sangue, o rio viu-se pejado de destroços e cadáveres. E, apesar de a Europa estar mergulhada em plena II Grande Guerra, o que trouxe a tragédia às portas de Lisboa foram dois inexplicáveis e brutais acidentes de avião que fizeram dezenas de mortos, mostrando à evidência que, apesar de as viagens por ar serem já corriqueiras, podiam acabar mesmo muito mal.

 

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A capital portuguesa era um entra e sai de estrangeiros aproveitando a neutralidade do País como plataforma rotativa da Europa para o resto do Mundo. Os aeroportos de Cabo Ruivo e Portela repartiam o movimento aéreo e, quatro anos após a estreia dos voos transatlânticos, aconteceu o primeiro grande desastre.

A 9 de janeiro de 1943, os jornais noticiavam a desgraça ocorrida nessa mesma manhã, quando um hidroavião comercial inglês se incendiou em pleno voo, precipitando-se de seguida, no rio, entre o Terreiro do Paço e Xabregas. Morreram 13 dos 15 ocupantes, quase todos curiosos que se propuseram apanhar boleia naquele voo experimental. Ileso, apenas um dos elementos da tripulação.

Tratava-se de testar o novo motor instalado no avião, o Golden Horn, da British Overseas Airways Corporation, que havia meses se encontrava no aeroporto marítimo de Cabo Ruivo devido a uma grave avaria.

As regras de segurança em vigor nesses tempos eram bem diferentes das que hoje conhecemos. Apesar de tal não ser legalmente permitido, era usual cidadãos aglomerarem-se junto à base aérea candidatando-se a participar em voos de curta duração, como este, até à “barra”. Nove dos mortos eram precisamente passageiros não formalmente autorizados.

Era 9h55 quando a aeronave descolou. Tudo correu de feição durante meia hora, mas, já no regresso, começaram a sair labaredas de um dos motores. O tenebroso espetáculo lançou o alarme entre quem assistiu, uma vez que o aparelho voava a baixa altitude.

a procura do avião submerso.GIF

Frustrando as tentativas do capitão Lock, para amarar, acabaria por mergulhar no Tejo, por entre explosões subaquáticas que faziam elevar-se colunas de água. À superfície viam-se então destroços e corpos inanimados a boiar.

 

Em pouco tempo tinham acorrido ao local rebocadores e outras embarcações, mercantes e de pesca, bem como viaturas dos bombeiros aos quais pouco restou para além de transportar mortos e feridos ao Hospital de S. José, enquanto, em terra, se iam juntando cada vez mais pessoas, na ânsia de perceber o que se tinha passado. Salvaram-se apenas os dois radiotelegrafistas, um dos quais com ferimentos.

Os dias seguintes foram passados em busca do avião submerso, dos destroços e dos restantes cadáveres de portugueses e ingleses, que foram aparecendo junto às margens, num cenário desolador e tétrico.

No mês seguinte, o pesadelo voltou, ainda mais trágico e mortal.

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Foi ao final da tarde de 22 de fevereiro, dia carrancudo, fechado, anormalmente abafado, de trovoada.

Ao dar a segunda volta para amarar, quando aparentemente tudo decorria normalmente, um hidroavião da Pan American World Airways inclinou-se perigosamente para a direita e roçou com a uma das asas na água.

Selou-se, assim, o triste fim desse Yankee Clipper - Boeing 314 A. O mesmo que, em 1939, tão valorosamente, tinha empreendido o voo transatlântico inaugural.

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O brutal embate no Tejo, na zona da cala de Alcochete, a escassos 800 metros do aeroporto, provocou um enorme cachão visto pelos olhos estupefactos dos tripulantes das embarcações próximas, nomeadamente as duas lanchas, da Pan American Airways e da British Overseas Airways Corporation, que era suposto coadjuvar a descida do hidroavião.

Seriam, ao invés, as primeiros a prestar socorro aos passageiros vivos que surgiram à tona. Dezasseis feridos foram transportados ao Hospital de São José.

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Só que o enorme navio voador tinha vindo dos Estados Unidos da América com lotação completa, transportando 39 pessoas.

Antecipou-se o pior para aquelas que não foram imediatamente resgatadas e as previsões estavam corretas.

O Tejo voltou tristemente a apresentar-se pejado de destroços, objetos aleatórios e muita correspondência destinada a vários pontos da Europa.

Começou-se o desmantelamento do aparelho e o resgate dos seus componentes enterrados no leito do rio, mas cinco dias depois ainda não tinham sido recuperados 18 dos malogrados ocupantes.

Um dos corpos foi encontrado em Paço de Arcos, vários quilómetros a jusante e, ao todo, morreram 24 pessoas.

Estes não seriam, no entanto, os únicos acidentes mortais associados ao desaparecido Aeroporto Marítimo de Cabo Ruivo.

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À Margem

O trágico voo de 22 de fevereiro foi muito noticiado também porque transportava um grupo de conhecidas artistas norte-americanas. Uma delas, Ivet Elsa Harnie Silver, e o primeiro secretário da embaixada dos Estados Unidos da América, William Walton Butterworth, foram os únicos a escapar sem ferimentos, conseguindo nadar até Alcochete, não sem que, antes, a atriz tivesse de se desenvencilhar do seu pesado casaco de peles. Jane Froman, também atriz e cantora, ficou gravemente ferida, mas sobreviveu. Carregaria para o resto da vida as marcas do acidente: as lesões físicas nas pernas e o peso de, à última hora, ter trocado de lugar com outra artista da Broadway - Tamara Drasin - que morreu no desastre.

Mas, nesse já duplamente trágico ano de 1943*, a 28 de julho, outro navio voador da British Overseas Airways Corporation, que havia descolado de Cabo Ruivo, despenhou-se antes de aterrar, na Irlanda, matando dez dos 25 ocupantes.

Em 15 de novembro de 1957, um Hidroavião da Aquila Airways com destino a Lisboa caiu ainda em solo britânico, causando 45 mortes.

O ano seguinte voltou a ser negro para a aviação em Portugal. A 9 de novembro, um Martin-Mariner da lusa ARTOP, que fazia ligações regulares entre Lisboa e o Funchal, partiu de Cabo Ruivo às 12h23. Cerca de uma hora depois envia uma mensagem de emergência anunciando a necessidade imediata de amarar. Foi a última vez que houve notícias da aeronave.

Apesar de aviões e navios civis e militares, terem, durante uma semana, analisado minuciosamente uma vasta área de oceano onde se presumia que tivesse tentado descer, nunca foi encontrado qualquer vestígio do aparelho e das 36 pessoas que transportava.

Mas isso é outra história…

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*Nesse fatídico mês de junho de 1943, caiu outro avião proveniente de Lisboa, desta vez do aeroporto da Portela.  Foi abatido por fogo alemão sobre o golfo da Biscaia. Curiosamente, neste também seguiam artistas, caso de Leslie Howard, ator e cineasta inglês, que na altura tinha sido nomeado embaixador cultural britânico para a Península Ibérica. O seu estatuto tornava-o prioritário para viajar, pelo que outros passageiros tiveram de abandonar o avião, para que ele pudesse voar…para a morte, com outras 16 pessoas.

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Já aqui antes tinha falado de quando Lisboa tinha dois aeroportos.

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Fontes

Cc | Diário de Lisboa | 1921-1990 (casacomum.org)

Diário de Lisboa

09 jan. 1943

10 jan. 1943

23 fev. 1943

24 fev. 1943

25 fev. 1943

26 fev. 1943

27 fev. 1943

 

Aviation Safety Network > (aviation-safety.net)

 

Relatório da Comissão de Inquérito às causas do acidente do hidroavião CS-THB, ocorrido em 9/novembro/1958.

19581109-0_PBM5_CS-THB.pdf (aviation-safety.net)

 

Leslie Howard – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)

Jane Froman - Wikipedia

Tamara Drasin - Wikipedia

 

Imagens

Aviation Safety Network > (aviation-safety.net)

Naval History and Heritage Command

Harris & Ewing

 

Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa

Doca - Artur João Goulardt, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/AJG/002993

 

Abril de 1943 - Bic Laranja (sapo.pt)

Imagens de filme do arquivo norte-americano montados por Spielberg. O que se passava no Tejo em Abril de 1943.

Chamas sobre o rio (sapo.pt)

A morte voltou a 23 de Fevereiro (sapo.pt)

 

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