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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

E todos a pneumónica levou

 

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A epidemia matou 580 pessoas na pequena vila de Alcácer do Sal e marcou toda uma geração, deixando numerosos órfãos e muitas famílias sem sustento. Entre tamanha desgraça, destacaram-se alguns “heróis”.

 

O último trimestre de 1918 foi mortífero para a Europa em geral e para Portugal em particular. A gripe pneumónica sucedeu à I Grande Guerra e não deixou qualquer família a salvo. Em Alcácer do Sal, a morte não se fez rogada, levando consigo 580 pessoas, um número dramático numa população tão escassa, até porque foram sobretudo jovens adultos os que pereceram. No meio de tanta desgraça, destacaram-se alguns heróis, ajudando a combater o flagelo que passou por aquela localidade alentejana durante esse negro mês de outubro.

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A epidemia, vinda do país vizinho e por isso também chamada de gripe espanhola, terá dado entrada por Montalvo, na época zona de grande aglomeração de cabanas onde viviam sem as mínimas condições centenas de trabalhadores rurais. Terão sido as suas migrações que aceleraram o contagio e fizeram em Alcácer do Sal “um número de vítimas superior ao de outros concelhos”.
À então vila acorreram muitos em busca de auxilio para o seu padecimento. Em dez dias, o Hospital da Misericórdia, o único que existia então, já não comportava mais doentes, pelo que se adaptou a antiga escola Conde Ferreira (na imagem 3), junto à qual se construíram anexos; ocupando-se para o mesmo fim a escola na época existente no largo da Ribeira Velha.

Capturar.GIFNa casa de Adelaide Zacarias, improvisou-se um hospital para crianças desvalidas.

Mesmo assim, houve gente deitada pelos corredores, até porque não havia quem quisesse tratar dos que já evidenciavam sinais da doença.
Neste cenário de pavor, destacam-se os poucos que se apresentaram como voluntários, casos de Maria Lucinda Seixas, Maria Fortunata Gagueija e Carlota da Silveira, que a pneumónica converteu em enfermeiras dedicadas.

Os médicos Joaquim Maria Dias de Vasconcelos, já idoso e coadjuvado por um clínico enviado pelo Estado, deu todo o apoio na vila, enquanto Joaquim José Alegre e Augusto Martins Gonçalves se desdobraram nas freguesias rurais, sem dormir nem descansar durante dias.
As farmácias tiveram que limitar a entrada de pessoas, para evitar tumultos. O farmacêutico José Fernandes de Carvalho e o seu irmão foram dos primeiros a sucumbir e tiveram que ser substituídos por outros, como Vítor Branco, que tinha vindo de férias e acabou atrás do balcão da farmácia da Misericórdia, onde já estava Manuel Augusto de Matos, que também adoeceu. João de Lara Alegre, deixou funções como secretário da câmara municipal e fez de farmacêutico durante semanas. O mesmo para Luís António Carraça, grande auxilio para o farmacêutico Jaime Romano Batista, extenuado e com a família doente.

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Os serviços paralisaram. Deixou de haver água para consumo na vila e faltaram bens de maior necessidade, o que acabaria por ser colmatado com a ajuda de alcacerenses mais abastados, que doaram géneros e emprestaram embarcações e animais para que se fosse buscar o que fazia falta, estabelecendo-se um sistema de assistência aos mais pobres que, não podendo trabalhar, também não tinham o que comer.
Não se sabia bem como se efetuava o contágio e, por isso, tentou-se atenuar possíveis focos da praga: criou-se uma brigada de limpeza e desinfeção de ruas e vielas, mictórios, pias de despejo e sarjetas. Imitando os grandes centros, fizeram-se fogueiras com eucalipto e alcatrão que, diga-se, deviam fazer mais mal do que bem, mas transmitiam às pessoas a ideia de se estar a afastar o mal.
As consequências da pneumónica, no entanto, não se ficaram pelos que faleceram naqueles meses de 1918. A epidemia marcou toda uma geração, porque deixou “muitíssimas crianças” na orfandade e “grande numero de mães e pais que ficaram com três, quatro ou cinco filhos menores, alguns ainda de peito, sem meios para poderem prover à sua sustentação e criação”.

À margem

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A devastação que a gripe pneumónica provocou em Alcácer do Sal espelha o que aconteceu à escala global – 20 milhões de mortos. Em Portugal, por exemplo, a epidemia foi o fenómeno que mais matou durante todo o século XX: cerca de 60 mil pessoas, especialmente jovens, grupo mais vulnerável a este mal. Ninguém estava preparado para algo assim, até porque as primeiras vagas da doença não foram especialmente fatais. Entre outubro e novembro de 1918 o panorama já foi bem diferente, com cerca de 5 mil óbitos só em Lisboa. Em poucas semanas, improvisaram-se três novos hospitais com capacidade para 1200 doentes, em estabelecimentos de ensino e antigos conventos. Médicos, enfermeiros e farmacêuticos não foram poupados e, num quadro de grande escassez, dificuldades de abastecimento de bens de primeira necessidade e instabilidade de preços, a que o esforço de guerra não era, de forma alguma, alheio – faltaram até caixões para tantos enterramentos,  mas, sobretudo, escassearam medicamentos e comida.


francisco e jacinta.JPGMorreu muito povo “sem rosto ou nome”, mas também pereceram artistas com carreiras promissoras, como o pintor Amadeo de Souza-Cardoso ou o pianista António Fragoso, e os pastorinhos Jacinta e Francisco, arrancados do anonimato por terem testemunhado, pouco tempo antes, as aparições na Cova da Iria.


Mas isso é outra história...

 

 


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Já aqui falei de outras epidemias, como a peste bubónica no Porto.

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Fontes
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
Relatório e contas da Comissão de Socorros em Alcácer do Sal durante a epidemia bronco-pneumónica, outubro-novembro 1918, Coimbra -Imprensa Académica – 1919 – PT/AHMALCS/CMALCS/BFS/10/01/002

Responder à epidemia: estado e sociedade civil no combate à gripe pneumónica (1918-1919), de Paulo Silveira e Sousa; Paula Castro; Maria Luísa Lima; José Manuel Sobral; Imprensa da Universidade de Coimbra. Disponível em http://hdl.handle.net/10316.2/41576


https://www.dn.pt/portugal/interior/a-epidemia-que-veio-de-espanha-e-matou-mais-de-60-mil-portugueses-9195035.html, texto de João Céu e Silva.


Imagens
Arquivo Histórico Municipal de Alcácer do Sal
PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0018

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0041

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0013

PT/AHMALCS/CMALCS/FOTOGRAFIAS/01/0038

 

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:CampFunstonKS-InfluenzaHospital.jpg

https://pt.aleteia.org/2018/06/28/dom-antonio-marto-o-novo-cardeal-de-fatima-e-parente-dos-pastorinhos/

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