Escritora, amante real e…freira
Feliciana Maria de Milão esteve no centro de uma feroz luta política concertada para depor D. Afonso VI com base na sua impotência. Talvez por isso – e pelo escândalo associado – foi silenciada a relação entre o rei e esta misteriosa religiosa do convento de Odivelas, que lhe poderá ter dado uma filha. De mão em mão, no entanto, circularam os seus escritos, poesia, cartas trocadas com os grandes do reino, prova da sua grande erudição, algumas traduzidas e publicadas. De boca em boca, viajaram, durante séculos, os seus ditos e trocadilhos, misto de provocação e anedota, mas sempre reflexo da arguta inteligência, rapidez de raciocínio e ousadia.
Não se lhe conhece a origem, porque Feliciana Maria de Milão ocultou os nomes dos pais no registo que preencheu quando deu entrada no mosteiro de S. Dinis e S. Bernardo de Odivelas, aos 30 anos, corria 1659. Mas, várias pistas ligam esta intrigante freira aos condes de Vale de Reis e, através destes, à alta nobreza de Aragão, o que a tornaria especialmente perigosa numa época em que Portugal ainda tentava fortalecer a recentemente recuperada independência, após o domínio filipino, entre 1580 e 1640.
Esta ascendência distinta poderia explicar ter tido dote para ingressar na vida conventual, mas também justifica a sua vasta e diversificada cultura, mestria de exposição e os óbvios hábitos de leitura que a sua produção literária reflete.
A vontade de escrever e publicar poderá mesmo ter sido decisiva na opção pela clausura. É que a sociedade do século XVII não tinha lugar para mulheres solteiras e independentes, muito menos autoras. Autónomas de pais e maridos, facilmente se tornariam suspeitas de ser meretrizes ou bruxas.
No convento, estaria protegida, mas não se furtou de dar nas vistas.
Foram, aliás, muitos os motivos para que se falasse de Feliciana Maria de Milão: entre a pega de touros que El Rei D. Afonso VI (na imagem) protagonizou em sua homenagem, em pleno adro, e na sequência da qual ficou ferido, tendo necessidade de ser sangrado, e as cartas onde se fala da relação da mesma real pessoa com Feliciana, então trocada por outra monja.
Das missivas políticas e amorosas, a outros escritos enigmáticos; da correspondência com Catarina de Bragança, futura rainha de Inglaterra e irmã dos reis D. Afonso VI e D. Pedro II e com o Duque de Cadaval, um dos maiores do reino; à participação numa obra coletiva da qual também fez parte uma das maiores escritoras hispânicas daquele tempo, a mexicana soror Juana Inés de la Cruz…
Somam-se a tudo isto as inúmeras frases irónicas e chistosas, provocatórias até, que lhe são atribuídas e foram repetidas milhares de vezes até chegarem aos dias de hoje, transformando-se, popularmente, no seu legado mais conhecido. Nesse ditos, goza com atributos físicos e de carácter dos seus interlocutores ou faz trocadilhos com os seus apelidos, demonstrando grande capacidade de observação, velocidade de pensamento e sentido de humor, embora se possa dizer que também dá nota de falta de humildade.
Apesar de nunca ter adotado um nome religioso, assinando sempre Feliciana Maria de Milão, mais tarde assumiu importantes funções de prioresa e abadessa, foi uma gestora de mérito e fez publicar o ofício da ordem.
No entanto, o seu comportamento não deixa de ser suscetível de censura – na medida em que falamos de uma freira – pois, mesmo sem se conhecer o verdadeiro teor, são-lhe conhecidas relações não só com D. Afonso VI, como pelo menos com mais dois homens: Pedro de Quadros e F. Aranha.
Talvez por isso o seu epitáfio contraste com outros que enaltecem as qualidades morais das monjas que jazem nas sepulturas da Sala do Capítulo, em Odivelas, onde morreu, em 1706. Terá pretendido que apenas se escrevesse “A pecadora”, mas alguém mandou gravar as seguintes palavras:
Pedra, que um tesouro guardas
Na Singular Feliciana
Dize ao mundo que se engana
Que quem tudo foi é nada
À margem
Dona Feliciana de Milão era incómoda para os partidários de D. Afonso VI, testemunhando os hábitos freiráticos, contrários à moral e à própria lei e, portanto, indignos de um rei que se devia mostrar forte e acima de qualquer contestação, num reinado que é apenas o segundo após a recuperação da independência de Portugal, em 1640. Era, igualmente, desfavorável às pretensões de D. Pedro II, que destronou o irmão com alegações de não consumação do casamento e, portanto, incapacidade para gerar descendência, num processo em que foram ouvidas várias prostitutas, mas não as freiras alegadamente amantes do rei, Feliciana, Ana Moura e também Maria das Saudades.
A 20 de março de 1686 dá entrada no mesmo Convento de S. Dinis e S. Bernardo de Odivelas uma Teresa de Milão, com 18 anos, cuja idade colocaria o seu nascimento no período de cerca de cinco anos que se estima tenha durado o relacionamento de D. Feliciana com o rei.
Aponta o nome dos pais como sendo Luís Pina Caldas e D. Ana Maria Milas de Macedo, mas vários autores dão esta jovem noviça como filha de D. Feliciana com D. Afonso VI, a quem ainda apontam outra descendente, fruto de uma relação com Catarina Arrais de Mendonça, que também daria entrada num convento.
Neste jogo de pistas e manobras de diversão, à distância de mais de três séculos, é difícil perceber o que foi verdade e o que era propaganda das fações rivais, os que queriam defender a competência do rei e os que afiançavam a sua impotência. Todo o processo da sua deposição foi, aliás, de muito mau gosto e grande indignidade, embora se possa argumentar que estava em causa o interesse nacional. Estaria?
Mas, disso, falaremos noutra história…
Fontes
Pedro António Freire Santos de Sena-Lino, Estratégias por Correspondência - Uma leitura da obra de Feliciana de Milão, tese de Doutoramento no Ramo de Estudos de Literatura e de Cultura Estudos de Literatura e Cultura de Expressão Portuguesa, Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Departamento de Literaturas Românicas, 2012, disponível em: ulsd064968_td_apendice.pdf
Pedro Sena-Lino, El Rei Eclipse, Lisboa, Contraponto Editores, outubro 2024.
Fernanda Maria Guedes de Campos , Feliciana Maria de Milão (1629 - 1705): Na Marca de Posse o Lema de Vida, in Revista do Instituto de Ciência da Informação da UFBA v. 16 n. 3 (2022). Disponível aqui: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaici/issue/view/2366
Hemeroteca Digital de Lisboa
A. Palmeirim, in A Illustração Portugueza, 24.05.1886.
A. Palmeirim, in A Illustração Portugueza, 31.05.1886.
Imagens
Nota: as imagens de religiosas são meramente exemplificativas. À exceção da primeira, aludem claremente à Ordem de Cister, à qual pertenceu D. Feliciana.
https://digitalcollections.nypl.org/items/510d47e4-817f-a3d9-e040-e00a18064a99
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_VI_de_Portugal
https://images.app.goo.gl/CWiSmHfnzZvLgdja7
https://images.app.goo.gl/AXtRa1iLqGRgqP738
https://www.guiadacidade.pt/pt/poi-mosteiro-de-sao-dinis-e-sao-bernardo-281493