Estes santos precisam de milagres
Em Portugal há um local com uma concentração anormal de múmias e despojos humanos. Não se trata de um cemitério, nem estes restos mortais são banais. Trata-se da maior coleção de relíquias existente no mundo, fora do Vaticano, que agrega desde corpos inteiros a pequenos fragmentos de osso, unhas, fios de cabelo ou meros pedaços de tecido manchados por fluidos corporais, que se pensa terem pertencido a indivíduos classificados como santos pela Igreja Católica. Enfim, é um estranho conjunto que faria Martinho Lutero dar voltas na sepultura…
São já dezenas de milhar, com as mais variadas proveniências, frequentemente degradadas, maltratadas e a precisar de urgente restauro. Muitas com origem no nosso País – paróquias e organismos estatais - vêm marcadas pelo abandono, relegadas que foram para um qualquer armazém, após a extinção das ordens religiosas e da implantação da República, quando o Estado tomou posse de parte dos bens da Igreja.
Esta lipsanoteca – museu de relíquias – situa-se no castelo de Ourém e pertence a uma entidade privada reconhecida pelo Papa, a Fundação Histórico Cultural Oureana.
As relíquias de maior porte são santos mártires. Podem revestir-se de diferentes apresentações, sendo comuns os corpos incorruptos – porque receberam complexos tratamentos nesse sentido ou porque assim se mantiveram naturalmente, o que é realmente raro - e os esqueletos armados, paramentados, deitados no interior de grandes expositores de época construídos para o efeito e que habitualmente se designam simulacros*.
Alguns apresentam-se com máscaras de grande beleza, que lhes conferem uma aparência angelical, outros têm um aspeto sinistro, macabro, recordando-nos que estamos perante os despojos de pessoas mortas, por muito miraculosas que se pense que tivessem sido e independentemente dos crentes que tenham arrastado.
Há, depois, relicários com ossos grandes – como crânios – outros desenhados para terem a forma da parte do corpo que encerram – uma mão, um braço, uma perna, por exemplo – e outros ainda que são verdadeiras peças de arte, em madeira ou metal, ricamente decorados, pintados, cobertos com tecidos, folha de ouro e semelhantes artifícios.
É chocante, o estado a que alguns chegaram, em resultado do efeito do tempo – séculos a apanhar pó, mas também servindo de pasto e ninho a insetos destrutivos e roedores insensíveis à beatitude - e, ainda, vítimas de reparações malfeitas por “curiosos”, ao longo dos séculos, quando existiam menos meios e escrúpulos para fazer este trabalho.
Tanto que, por vezes, é preciso recriar o revestimento da armação em osso, construído em cera ou papier marchè, que simulava a carne que os indivíduos teriam em vida e permitia que estes fossem vestidos e adornados segundo os costumes da época em que foram criados, complementos, esses, que também necessitam de reparação ou substituição.
A pesquisa prévia é igualmente um trabalho meticuloso e que se assemelha ao de um detetive, sendo comum detetarem-se ardilosas falsificações forjadas e escondidas durante centenas de anos. (ver À margem).
Apesar do respeito pela simbologia sagrada associada àqueles objetos, o trabalho é de cariz científico, uma vez que são ali recebidas centenas de relíquias, para estudo, autenticação, conservação e restauro, com vista a que possam, no futuro, nomeadamente, ser expostas ao público.
É que os simulacros de santos voltaram a estar na moda e estão agora a ser resgatados do esquecimento pelos Estados e pela Igreja Católica, enquanto se “produzem” outros já fazendo uso de técnicas e materiais modernos, que resultam numa reprodução mais fiel da aparência humana da pessoa morta e mais agradável à vista, também.
À margem
O culto das relíquias está documentado pelo menos desde o século II depois de Cristo, mas houve períodos de mais intenso incremento desta crença, fomentada pelos diferentes Papas que, a partir do século XVII, mandaram exumar dezenas de milhar de ossadas de mártires e as distribuíram pela cristandade. Sepultados nas catacumbas do Vaticano, como se vê, não encontraram ali descanso.
Possuir relíquias, especialmente de santos famosos e importantes, era sinal de prestígio e poder, quer para as nações, quer para os seus reis e nobres, as dioceses e as ordens religiosas. Não admita, pois, que logo tenham aparecido os multiplicadores de relíquias, que as comercializavam a preços elevados e, aparentemente, sem problemas de consciência.
No final do século XVIII, o italiano António Magnani foi um dos maiores fabricantes e exportadores de simulacros. Produzia em série, num novo material – a ceroplástica – e decorava as suas produções com adereços que fazem lembrar os soldados e princesas do império romano, hoje disseminadas por toda a Europa.
Assim, séculos passados, encontram-se diversos simulacros do mesmo mártir, outros que, em vez de terem sido construídos com ossos do próprio, o foram com peças falsificadas, moldadas em gesso ou cera, por exemplo.
Havia também redes que se dedicavam ao roubo e tráfico de relíquias por encomenda e toda uma série de outros estratagemas destinados a empolar o valor histórico e religioso dos objetos, que se pretendia passar como tendo pertencido aos mártires e santos católicos, como a criação de relíquias por mero contacto com as verdadeiras partes do corpo ou embutindo pequenos fragmentos em peças maiores com origem diversa.
É, portanto, natural que este tema tenha apaixonado escritores, como Eça de Queiroz, que lhe dedica um romance e, em simultâneo, tenha provocado a crítica de alguns sectores da igreja.
Este foi o caso de Martinho Lutero, motor da Reforma Protestante, no século XVI, um acérrimo crítico da venda de indulgências e do culto de relíquias, que também não teria ficado feliz com a coleção de 265 relicários e mais de 500 relíquias de santos, patente na Igreja e no Museu de São Roque, em Lisboa.
Mas isso é outra história…
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Nota: Carlos Evaristo, reconhecido perito em relíquias sagradas, é o presidente da Direção da Fundação Histórico-Cultural Oureana.
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*A designação mais correta, em latim é simulacra sanctorum
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Já aqui antes falei de outro local onde se encontravam restos mortaos "especiais", mais propriamente estranhas entranhas dos reis de Portugal.
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Fontes
https://www.fundacaooureana.pt/
Joana do Carmo Palmeirão, Tese para obtenção do grau de Doutor em Conservação e Restauro de Bens Culturais, Universidade Católica Portuguesa, Escola das Artes, janeiro 2023. Disponível aqui: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/43164/1/101734336.pdf
https://rafaelaferraz.com/santos-catacumbais-portugal/
https://scml.pt/media/noticias/relicarios-e-reliquias-um-tesouro-escondido-no-coracao-de-lisboa/
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