Estranhas entranhas dos reis de Portugal
Restos mortais não identificados, túmulos vazios, ossadas mudadas várias vezes, “penetras” em sepulcro alheio e as vísceras de alguns reis de Portugal são alguns dos segredos mal guardados do Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa.
Por onde quer que se caminhe, em São Vicente de Fora, é inevitável que pisemos lajes de sepultura. Na antiga sacristia, ossadas desconhecidas “espreitam” por uma janela no pavimento e, na maior parte das pedras tumulares, o tempo encarregou-se de apagar a gravação que identificava o ocupante daquele espaço. Depois, há os locais especiais, que albergam os restos mortais dos indivíduos mais importantes do antigo reino de Portugal e, à parte, as suas vísceras.
A velha sala do Capítulo, onde os monges se reuniam, acolhe agora os patriarcas de Lisboa, que ali têm o seu sepulcro desde D. Carlos da Cunha e Menezes (1759-1825).
Duas câmaras guardam os restos mortais dos Bragança.
Na primeira – a mais modesta - estão dois (D. António e D. José) dos três bastardos que D. João V reconheceu como seus – os denominados “meninos de Palhavã”.
Se ali estivessem todos os filhos ilegítimos da família – ou de qualquer dinastia, entenda-se - não caberiam em tão exíguo mausoléu.
Por debaixo dos nossos pés, escapando a uma visita menos atenta, estão enigmáticos quadrados em mármore de várias cores com inscrições em latim.
É preciso ver com atenção para perceber que ali se guardam as entranhas de reis de Portugal. Corações e vísceras de D. João V, D. José I e D. João VI (Imperador e rei); ainda D. Pedro III e Augusto, Príncipe de Beauharnais, reis consortes, respetivamente, de D. Maria I e de D. Maria II.
Estas lajetas escondem os órgãos internos de alguns dos ocupantes mumificados que repousam a pouca distância, no panteão dos Bragança. Estão conservados em formol, no interior de potes cerâmicos.
Embora retirados durante o processo de embalsamamento, eram despojos dos monarcas e, logo, não poderiam descartar-se de ânimo leve. Foram assim depositados em solo sagrado, mas não junto aos seus legítimos proprietários.
Dir-se-ia que, tal como as crianças fruto de relações extraconjugais eram filhos, mas não aceites como iguais aos legítimos, também as vísceras, embora pertencendo ao corpo de onde foram extraídas, não eram suficientemente puras para figurar no mesmo espaço.
Poderia pensar-se que, então, que no panteão dos Bragança só estariam os mais importantes elementos desta estirpe, mas também essa apreciação não é correta, porque as coisas raramente são o que parecem.
Para começar, logo no corredor de acesso, estão, por assim dizer, dois “penetras”: os Duques de Terceira** e o Duque de Saldanha***, com especial autorização para partilhar as mesmas paredes que o clã real, privilégio resultante dos altos serviços prestados, enquanto “heróis do liberalismo”.
Já na grande sala, no pavimento, revelado apenas para quem percebe latim e ofuscado pelo exuberante túmulo de D. João IV, está o coração do Marquês de Marialva****.
O seu corpo não podia estar naquela câmara, mas encontrou-se forma de ali instalar o âmago daquele nobre que até na morte seguiu o restaurador, quiçá com o intuito de o ajudar em outras conquistas além-vida.
Durante cerca de meio século, sem qualquer ligação direta à família real portuguesa, ali estiveram também os restos mortais de Carol II da Roménia. Em 1953 morreu num exílio ensolarado, no Estoril, e só em 2003 se transferiu para o seu País.
Há ausências notadas na sala. Entre elas, D. Maria I, que morreu no Brasil, mas está sepultada na Basílica da Estrela, que ela própria mandou erigir. D. Pedro IV (I do Brasil), embora tenha o seu lugar assinalado em São Vicente de Fora, efetivamente, encontra-se em S. Paulo...Bem, não todo, porque uma parte do “pai” da Carta Constitucional ficou cá. (ver À margem)
O seu filho, D. Pedro II, e a mulher deste, foram igualmente trasladados para o outro lado do oceano, em 1921.
Como em todas as famílias, há os indesejados. Aqueles que, embora sejam sangue do nosso sangue, queremos ver longe. Assim foi com D. Miguel, proscrito e banido – tal como os seus descendentes - depois de todas as manobras para ser rei.
Sanadas as questões do passado, os seus restos mortais tiveram permissão de ali descansar, mas só a partir de 1967.
No entanto, tinha sido já no reinado de D. Fernando II que o antigo refeitório do mosteiro foi promovido a sepulcro dos Bragança. Antes, os “eleitos” estavam acomodados na Igreja. Nos anos 30, Raul Lino foi o autor da nova organização e da atual aparência dos túmulos.
Entre tantos reis jazentes, há uma única figura que se destaca.
Uma mulher chora em silêncio a morte – prematura e violenta – de D. Carlos e de D. Luís Filipe, ajoelhada junto aos seus túmulos. Não se lhe vê a cara, coberta pelas mãos.
De forma perturbadora, no entanto, percebe-se-lhe bem a DOR, título desta obra escultórica de Francisco Franco.
À margem
Praticamente todas as movimentações (trasladações e exumações) efetuadas aos restos mortais dos nossos reis e respetivas famílias estão documentadas em autos guardados na Torre do Tombo, que também recebeu as chaves dos caixões e das urnas com os reais despojos. Nessa documentação conta-se igualmente como o corpo de D. Pedro IV seguiu para o monumento do Ipiranga (Cripta do Parque da Independência), em São Paulo, onde jaz desde 1972.
O seu coração, no entanto, está na Igreja da Irmandade da Lapa, no Porto, numa homenagem feita a pedido do próprio monarca, no seu leito de morte, pelo papel daquela cidade e dos portuenses durante a guerra civil entre liberais e absolutistas.
Foi no Porto que D. Pedro e as suas tropas resistiram cercados pelos partidários de D. Miguel, que acabariam por derrotar. As cinco chaves necessárias para chegar a esta relíquia são conservadas pelo presidente da Câmara da “cidade invicta”.
No Brasil, por outro lado, o que resta de D. Pedro e das imperatrizes Maria Leopoldina e Amélia Augusta (é a sua múmia que vemos na imagem 1) foi exumado e analisado por especialistas, em 2012.
Isto serviu para saber que monarca tinha algumas costelas partidas e um pulmão severamente afetado, pelo que terá sofrido longamente de graves problemas respiratórios.
Serviu também para desmentir que D. Leopoldina tivesse qualquer fratura resultante de uma queda provocada pelo marido que as más-línguas asseguravam que teria sido a causa da sua morte.
Mas isso é outra história…
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Já aqui antes falei dos filhos ilegítimos de D. João V
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*D Gaspar também foi legitimado, mas repousa em luxuoso túmulo na sé de Braga, condicente com a posição de arcebispo, que assumiu durante 31 anos.
** António José de Sousa Manuel de Meneses Severim de Noronha e a segunda mulher, Maria Ana Luísa Filomena de Mendonça
*** João Carlos Gregório Domingos Vicente Francisco de Saldanha Oliveira e Daun
**** António Luís de Meneses, também conhecido como “o libertador da Pátria"
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Fontes
Visita guiada por Joana Santos Coelho ao Mosteiro de São Vicente de Fora
Arquivo Nacional Torre do Tombo
Jornal Público
Restos mortais do rei Carol II deixam hoje Lisboa | Regressam à Roménia | PÚBLICO (publico.pt)
Revista Visão
Visão | O coração de D. Pedro IV (sapo.pt)
Pedro IV e o seu Coração - Vídeo Oficial - YouTube
Coração de D Pedro IV foi retirado da Igreja da Lapa - YouTube
As exéquias de D. Gaspar de Bragança na Sé de Braga (um desenho inédito de Carlos Amarante), de Isabel Mayer Godinho Mendonça; Revista da Faculdade de Letras - Ciências e Técnicas do Património ; Série vol. III, pp. 255-270 - Porto, 2004. Disponível em: Patrimonio_III (up.pt)
Pedro II do Brasil – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Pedro I do Brasil – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Gaspar de Bragança – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Google tradutor -.Latim/Português
Imagens
Fotografias da autora
Arquivo Municipal do Porto
Código parcial F.NP:CMP:7:1645
Código parcial F.NV:FG.M:7:85
Código parcial F.NV:FG.M:7:162
Arquivo Municipal de Lisboa
Paulo Guedes
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/NUN/000240
Panteão Real dos Braganças - A Monarquia Portuguesa (sapo.pt)
Panteão da Dinastia de Bragança - Wikiwand
Exumação de corpos de D. Pedro I revela novos detalhes da famíila real (camacarifatosefotos.com.br)