Febre-amarela em Lisboa e quarentenas na Margem Sul
Desinfetados, explorados pela criadagem, guardados por militares, mortos de tédio e isolados o tempo que fosse preciso para afastar perigo de contágio. Assim era a quarentena dos que chegavam a Lisboa em navios suspeitos de trazerem maleitas exóticas passíveis de se disseminarem pela nossa população
Portugal foi, ao longo da história, vítima de numerosas e trágicas epidemias vindas de terras mais ou menos distantes. Como a principal “porta” de entrada de pessoas e mercadorias em Portugal era o Tejo, o centro para desinfeção e quarentena foi construído perto da Capital, mas suficientemente longe para a proteger de contágios. A escolha recaiu sobre a Margem Sul e o medo da febre-amarela fez com que as instalações crescessem e se modernizassem, embora todos os que ali foram obrigados a permanecer se queixassem das acomodações, do isolamento e até da exploração a que eram sujeitos pela chusma que vivia dos pagamentos e esmolas dos viajantes “presos” no Lazareto de Lisboa. Rafael Bordallo Pinheiro, chegou a escrever um livro humorístico sobre a sua experiência em tal hospedagem.
Até ao século XVIII, o controlo da entrada de doenças era feito na Trafaria, tendo depois passado para a Torre Velha (São Sebastião de Caparica - Porto Brandão) e desta para a zona de Porto da Paulina, a curta distância. Durante muito tempo, no entanto, as pessoas suspeitas de portarem maleitas faziam as suas quarentenas aguardando em pontões sem condições, amontoadas em instalações imundas e exíguas para tanto movimento marítimo.
Um surto de febre-amarela, ocorrido em Lisboa, ia o século XIX a meio, empurrou o poder político para obras de beneficiação no lazareto, tal foi o alarde social provocado pela horrível doença hemorrágica, também conhecida como “vómito negro” (ver À Margem). Durante os 50 anos que se seguiram, foram várias as intervenções destinadas a melhorar as condições de atracação de navios, capacidade de acolhimento, isolamento, tratamento e desinfeção.
Assim que as embarcações suspeitas de trazerem moléstias contagiosas atracavam, os passageiros eram forçados a dirigir-se à zona da alfândega.
Nos armazéns ali existentes, as suas roupas e todos os pertences tinham que passar pela “beneficiação”, assim se chamava a desinfeção a que eram sujeitos, “pelo ar, por meio de ventoinhas mecânicas; pelo calor nas estufas Geneste & Herscher, ou pela ação do ácido sulfuroso”, que mataria as “bactérias inimigas”. A bagagem, por vezes de 300 a 400 pessoas a cada vez, seguia o mesmo tratamento.
As acomodações - distintas consoante a classe em que se viajava – e a cozinha, com capacidade para servir mil refeições em simultâneo, ficavam num patamar superior, sobranceiro ao rio. Cada “quarentena” era um espaço independente, para evitar contactos com o exterior. Circundava-as um caminho de ronda, para que os ocupantes pudessem ser vigiados e facilmente apanhados, caso tentassem fugir deste repouso compulsivo. Para esse fim, existia um destacamento militar ali instalado.
Havia capela, hospital com enfermaria de isolamento para casos suspeitos e “barracas de madeira e argamassa” para os serviçais, carvoeiros e estivadores dos navios sob suspeita também pudessem fazer a sua quarentena, mas sem se misturarem com os passageiros. Havia ainda um cemitério destinado exclusivamente aos que, ali entrando doentes, não resistissem ao mal.
No início do século XX, o Lazareto de Lisboa era o nosso bastião contra as invasões epidémicas, mas continuava a ser visto como uma espécie de hotel-prisão para os viajantes, que receavam os incómodos e atrasos, para além de se queixarem do seu dinheiro ser extorquido pelos criados, os carregadores, os catraieiros, que transportavam a Lisboa quem já tinha ordem de soltura, o capelão e até a própria instituição, onde tudo se pagava.
Aproveitando o facto de nenhum privado ter concorrido à exploração do Lazareto, nomeadamente do serviço de refeições, António Homem de Vasconcelos, que ali foi inspetor durante várias décadas, impôs um regime autónomo que chegou a dar muito e bom lucro ao Estado, cobrando valores classificados como exorbitantes aos que ali eram obrigados a estar.
Do que ninguém se queixava e constituía, aliás, o único bálsamo para as pobres almas ali detidas, era da extraordinária paisagem que se abria perante os seus olhos. De Cascais ao Mar da Palha, um rio vasto e cristalino sob um céu tão azul quanto inatingível.
E em frente, Lisboa. Bela, imponente, plena de movimento e vida. O destino que todos desejavam alcançar, ali tão perto e impossível de obter antes de uma espera que parecia interminável, mas que era preciso aceitar, para o bem de todos.
À margem
A epidemia de febre-amarela, que grassou em Lisboa, em 1857 – seguindo dois pequenos surtos no ano anterior, no Porto e também na Capital – matou mais de 5.500 mil pessoas, num total de 15 mil doentes, entre julho e dezembro. Os primeiros a tombar foram os trabalhadores da Alfândega, o que reforçou a ideia de a doença ter uma origem externa, provavelmente no continente americano. Os bairros mais afetados foram os populosos aglomerados da zona ribeirinha – Anjos, São José, Coração de Jesus, Sé e Santa Catarina. Como é compreensível, o terror foi geral. As autoridades encerraram as escolas, limitaram os espetáculos e outros divertimentos, restringindo igualmente os contactos dos quarteis, asilos e prisões com o exterior, o mesmo para as instalações de assistência da Santa Casa da Misericórdia e da Casa Pia de Lisboa. Mas, sinal dos tempos, multiplicaram-se as missas, procissões e preces coletivas. O rei, à época D. Pedro V, fez questão de estar em todos os locais onde a doença apareceu, disponibilizando verbas próprias para ajudar os mais desprotegidos. Jovem e belo, apareceu ao povo como um anjo salvador. Não admira o desespero, a revolta e a profunda consternação que a sua inesperada morte, com febre tifoide, provocou em todo o reino.
Mas isso é outra história…
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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Branco e Negro
2º ano; Nº 60 – 23 mai. 1897
Texto de António Frazão
Brasil-Portugal
Nº23 – 1 jan. 1900
Illustração Portugueza
Nº172 – 7 jun. 1909
Biblioteca Nacional de Portugal
No Lazareto de Lisboa, de Rafael Bordallo Pinheiro; Empreza Literária Luso Brazileira – Editora ; Lisboa - 1881
0 imaginário social das epidemias em Portugal no seculo XIX, de Júlio Joaquim da Costa Rodrigues da Silva Professor Associado da F.C.H.S. da Universidade Lusíada de Lisboa; Lusíada. História. Lisboa. II Serie, n. 0 1 (2004). Disponível em revistas.lis.ulusiada.pt ›
Turismo de cruzeiros em Lisboa: uma abordagem antropológica; Dissertação submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Antropologia Urbana de Alexandra Duarte Baixinho; 2008. Disponível em https://repositorio.iscte-iul.pt