Foi um ar que lhes deu, nas Festas de Lisboa
Em 1913, as Festas da Cidade de Lisboa foram tingidas com o sangue de quatro mortes, duas das quais durante o desfile do 10 de junho. Nada que afetasse o brilhantismo das comemorações naqueles tempos difíceis em que a morte violenta estava ao virar de cada esquina e, por isso, era encarada com resignada normalidade.
Há exatamente 110 anos, foram quatro as mortes trágicas que marcaram as Festas de Lisboa. Duas pessoas caíram dos ares e outras duas foram pelos ares…confuso? Imagine a confusão que então se viveu.
Mas, apesar das manifestações públicas de pesar, as comemorações continuaram com vivacidade e alguma indiferença, naqueles tempos conturbados.
Demonstrando-se moderna e seguidora das mais recentes tendências, a cidade assistiu, nesse longínquo ano de 1913, a um inédito “Certâmen de Aviação”, organizado de forma “leve” no que às questões de segurança diz respeito.
O resultado foi a morte de dois dos quatro aviadores convidados.
O único piloto português participante, Luís de Noronha, não chegaria a levantar voo no festival, quedando-se pelos treinos, que lhe foram fatais.
O hidroplano Voisin – comprado por subscrição pública promovida pelo jornal O Século e oferecido ao Governo – despenhou-se no Tejo, perto do Seixal. Tinha acabado de ser estreado.
Caiu praticamente na vertical de uma altura de 30 metros e o resultado foi um forte embate no qual o aeronauta fraturou um braço e sofreu lesões internas – uma congestão pulmonar - que acabariam por o matar.
A 13 de junho, o homem que o substituiu teve igual fim, na zona da Portela de Sacavém. Em pleno voo, o piloto italiano Manio foi vítima de ventos cruzados que já haviam ameaçado lançá-lo sobre o público.
Projetado contra a hélice, que o mutilou horrivelmente, tombou depois desamparado de uma altitude de 300 metros, embatendo no chão, tal como o avião – um Blériot – que ficou completamente destruído.
Já não chegou a fazer os voos em espiral para os quais estava inscrito a concurso.
Os dois acidentes causaram alguma perplexidade, mas, enquanto algumas vozes clamavam pelo fim das experiências aéreas, outras defendiam que, se já havia mortos na aviação em Portugal, era porque o País estava a ficar civilizado!
Tão civilizado que, três dias antes, havia assistido a um atentado à bomba que matou duas pessoas e fez numerosos feridos.
Foi durante o Cortejo Camoniano de 10 de junho. Estava o desfile a passar na rua do Carmo, prenhe de gente que queria ver o espetáculo, quando soa um estrépito inexplicável.
Tudo aconteceu junto ao Hotel Universo, no preciso momento em que alguns operários tentaram forçar a sua entrada no grupo que desfilava, transportando corajosamente uma bandeira negra onde se lia: “Pão ou trabalho”.
Pensou-se em foguetório, comum em dia de festa, mas depressa se percebeu que algo estava errado, pois algumas pessoas estavam já caídas, ouviam-se gritos aflitivos, o sangue escorria pelo pavimento e as paredes próximas apresentavam-se crivadas de estilhaços.
Resultado: um morto no local, outro que viria a falecer no hospital e um elevado número de feridos, atingidos pelos fragmentos, que se espalharam descontroladamente.
No local, houve logo curativos e detenções. A multidão em fúria acabaria também por destruir imediatamente um quiosque e instalações associadas aos sindicatos, que culparam pelo atentado.
Foi, sem dúvida, um 10 de junho incomum e funesto, mas aqueles eram tempos em que o povo estava mais preocupado com o que punha na mesa, face à escassez de bens, nomeadamente pão de qualidade. Eram tempos em que os tumultos e os ataques à bomba eram frequentes.
A morte estava ao virar da esquina e, por isso, as festas não pararam e, apesar de alguma consternação passageira, até se chegou a afirmar que aquele “triste incidente” perturbou as comemorações lisboetas apenas por “uns momentos”, sem os quais, “as festas da cidade só teriam uma nota: a do brilhantismo”.
De resto, o ocorrido serviu até para os políticos fazerem o que fazem melhor: mostrar-se e demonstrar empatia e compreensão pelos males do povo, ainda que por breves instantes, durante as visitas ao hospital, onde convalesciam os feridos (na imagem, o Presidente da República, Manuel de Arriaga, e o chefe do Governo, Afonso Costa).
À margem
A carestia de vida; a reforma no ensino; os julgamentos dos supostos conspiradores monárquicos – alguns ilustres, como Júlia Brito e Cunha - as questões políticas do momento; os movimentos sindicais, greves e manifestações... para além dos numerosos e diversificados divertimentos integrados nas Festas da Cidade. Estes eram alguns dos temas mais debatidos nos jornais durante aquele mês de junho de 1913.
Um outro assunto, mais erudito, mobilizava a opinião pública esclarecida. O destino a dar ao Arco de Santo André, que Lisboa percebeu então que era propriedade privada e tinha sido vendido, estando ameaçado de demolição.
Tratava-se de uma das 37 portas da antiga Cerca Fernandina, situada à entrada da Calçada da Graça e, sinal dos tempos, em inícios do século XX, transformara-se num empecilho à cabal circulação dos elétricos, acabando mesmo por ir abaixo naquele início de verão.
É verdade!... Ainda houve aquele caso do jovem flautista que matou a namorada adolescente a tiro e se tentou suicidar de seguida, lá para os lados de Beirolas. Alegou que ambos tinham acordado o suicídio, mas os médicos conseguiram salvá-lo, habilmente retirando a bala alojada no crânio.
Mas isso é outra história…
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Já aqui antes falei destes tempos conturbados, e de um certo prédio de conspiradores e bombistas, bem como de um julgamento de senhoras célebres, suspeitas de ajudarem os revoltosos.
Fontes
Henrique Henriques Mateus, Os primórdios da aviação em Portugal, in Viagens Aeronáuticas dos Portugueses, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997.
Fundação Mário Soares
www.casacomum.pt
Jornal a Capital
01-15.06.1913
Hemeroteca Digital de Lisboa
Ilustração Portuguesa [1903-1993] (cm-lisboa.pt)
Illustração Portugueza
16.06.1913
23.06.1913
Imagens
Illustração Portugueza
Joshua Benoliel
16.06.1913
23.06.1913
Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa
Joshua Benoliel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002506
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002516
José Artur Leitão Barcia
PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/BAR/000045