Instantâneos (100): nada se perde, tudo apodrece
Felizes. Triunfantes. Dir-se-ia que acabaram fisgar um belo peixe e vão chegar eufóricos a casa, mostrando à mãe o que levam para o jantar. Estes rapazes parecem respirar a costumeira despreocupação da juventude, temperada com uma pitada de rebeldia e uma boa dose de atrevimento na forma como olham para a câmara. Mas, este instantâneo com um século esconde uma realidade bem menos sorridente e, se as fotografias tivessem a capacidade de exalar o odor do local onde foram captadas, já teríamos, certamente, fugido todos a correr ou, pelo menos, sucumbido às náuseas que, sem dúvida, nos assaltariam.
Por isso, olhe de novo, veja o aspeto macilento do peixe. Perceba que tudo em volta é podridão e fedor. Estamos numa das fábricas de guano de Lisboa, o local mais insalubre da cidade, o espaço mais repulsivo, o antro da repugnância.
Não há, no entanto, lugar para nojos, porque é também lugar de trabalho, onde indivíduos se afadigam espalhando o peixe putrefacto que ali chega diariamente, acomodando-o para que se decomponha ainda mais, até que não reste nada a não ser uma substância muito útil, mas extremamente desagradável até chegar a esse nível de apuro e transformação.
O pescado é uma das principais matérias-primas usadas nesta unidade, mas também ali chegam batatas e produtos hortícolas em fim de vida - noção que, no início do século XX, seria bem diferente da que hoje impera – e outros despojos bem mais macabros, como cães e cavalos mortos, vísceras descartadas no matadouro e tudo o mais que se entenda ter fácil deterioração.
A Câmara de Lisboa – como outras – chegava a concessionar a recolha de animais para este fim, ajudando a “engordar” o adubo orgânico, enquanto limpava a rua de rafeiros indesejáveis.
Enfim, outros tempos bem mais agrestes, para homens e animais.
Tempos em que, como bem se pode ver, não existiam preocupações com a saúde de quem labutava nestas fábricas, ou dos que habitavam nas imediações e frequentemente se queixavam do cheiro e das moscas que conspurcavam tudo em volta.
O conceito presente numa fábrica de guano, esse, é intemporal e usado pelo homem desde que há memória.
Continua a ser atual e proveitoso, também como forma de retirar matéria orgânica dos aterros e transformá-la em algo útil. Trata-se, afinal, de fazer compostagem, reciclando o lixo orgânico que rejeitamos diariamente.
Num País com uma tão vasta costa e forte tradição pesqueira, como é fácil de imaginar, proliferaram unidades um pouco por todo o território, sem lei, nem ordem, e em especial nas localidades com indústria conserveira – Olhão, Peniche, Setúbal, Sesimbra, Nazaré, Trafaria e Lisboa (Alcântara) são alguns exemplos.
Com o aperto das normas, a maior parte fechou e outras adaptaram-se, chegando aos nossos dias.
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O lixo é repugnante, mas já qui antes falei de pessoas que enriqueceram a partir do lixo:
O “rei” que transformou lixo em dinheiro e poder - O sal da história (sapo.pt)
O português que enriqueceu com sobras peixe … e muita persistência - O sal da história (sapo.pt)
Fontes
Arquivo Municipal de Lisboa
Contrato de adjudicação
PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0003/035
Antiga fábrica de adubos orgânicos
PT/AMLSB/CMLSBAH/COPA/001/51061
Concessão a François Pierre Auguste
PT/AMLSB/CMLSBAH/FNAJ/001/0004/020
Esteves Pereira, Guilherme Rodrigues, Portugal. Diccionário Histórico, Chorográphico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico Vol. V, Lisboa, João Romano Torres e Cª – Editores, 1911. p. 26. Disponível aqui: https://archive.org/stream/portugaldicciona05pere/portugaldicciona05pere_djvu.txt
Direção-Geral do Património Cultural
Forte de Nossa Senhora da Saúde da Trafaria
http://monumentos.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=32962
Conservas de Portugal – Museu Digital da Indústria Conserveira, A Indústria Conserveira na Construção da Malha Urbana no Algarve: OLHÃO (6), texto de Armando Filipe da Costa Amaro
Disponível aqui:
Ernesto Veiga de Oliveira, Fernando Galhano, Benjamim Pereira, Atividades Agro-Marítimas em Portugal; Coleção Portugal de perto; Lisboa, Etnográfica Press, 1990. Disponível aqui:
https://books.openedition.org/etnograficapress/6428
Peniche Surf News,Memórias de Peniche, texto de Luís Rafa Matos. Acessível aqui:
http://penichesurfnews.weebly.com/blog_opiniao/memrias-de-peniche
Francisco Castelo, Fototeca Municipal de Lagos, Cem anos de Indústria Conserveira em Lagos - A memória em imagens –1º Congresso da Associação de Municípios Terras do Infante, Centro Cultural de Lagos – 2019. Aqui:
Cem anos de Indústria Conserveira em Lagos
Biblioteca Nacional de Portugal, em linha.
Diário Illustrado, 06.07.1892
O Paiz, 05.11.1895
Imagens
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Arquivo Nacional da Torre do Tombo - DigitArq (arquivos.pt)
Empresa Pública do Jornal O Século, Fotografias de 1921-1925
Autor não identificado, 1922.
Documentos: PT/TT/EPJS/SF/006/02714, PT/TT/EPJS/SF/006/02800, PT/TT/EPJS/SF/006/02803, PT/TT/EPJS/SF/006/02836, PT/TT/EPJS/SF/006/03087, PT/TT/EPJS/SF/006/03173, PT/TT/EPJS/SF/006/03174