Instantâneos (101): bolachas de manteiga nos píncaros
Primeiro, a Torre dos Clérigos, no Porto. Depois, a Basílica da Estrela, em Lisboa. Fazendo uso de incrível destreza e arrojo, à força de mãos e pés, dois homens treparam ao topo destes monumentos, para assombro dos muitos milhares que, atónitos, aplaudiam.
Esta é a história do primeiro filme publicitário português: com o País em guerra, num período de grande instabilidade política e económica, com o povo cheio de fome, foram servidas bolachas às multidões.
Nem sequer foram bolachas verdadeiras, mas sim papelitos impressos com a imagem das ditas.
E, mesmo assim, foi um enorme sucesso!
A manobra publicitária inédita entre nós e que, ainda nos dias de hoje, seria aparatosa e motivo de intensa curiosidade, partiu da genialidade de Raúl Caldevilla e da aposta da marca de bolachas Invicta, com o objetivo de divulgar as suas petit beurre.
Para tal, contrataram dois acrobatas espanhóis, José Puertollano e o seu pai, Miguel (na última imagem).
No dia 28 de outubro de 1917, com aparente facilidade, escalaram os mais de 75 metros que separam a rua e o ponto mais alto da Torre dos Clérigos, onde ainda se dedicaram a imperturbáveis exercícios de ginástica, desfraldaram bandeiras e simularam tomar um chá, acompanhado pelas conhecidas bolachas de manteiga.
Dali mesmo distribuíram esvoaçantes replicas das mesmas, que caíram sobre a multidão em delírio, num misto de horror e entusiasmo.
Correu tão bem, que repetiram a proeza mais duas vezes e, menos de um mês depois, estavam em Lisboa, causando a mesma admiração, marinhando primeiro as torres e depois o zimbório da Basílica da Estrela.
Tal como no Porto, contorceram-se, esticaram-se, usaram como base os ornamentos e os ombros das enormes figuras de pedra existentes nos edifícios. Num ápice, chegaram aos píncaros.
Aí, brincaram com o cata-vento e ensaiam idêntico lanche nas nuvens.
Em ambas as ocasiões, estima-se que as perigosas ascensões tenham sido vistas por mais de 150 mil pessoas, que monopolizaram os transportes públicos – comboios e elétricos – para se deslocarem para o lugar de todas as emoções; encheram as ruas, as janelas e até as árvores, os postes telegráficos e os telhados das redondezas, na ânsia de participar nestes momentos de alienação coletiva.
Mais tarde, ainda se apinhariam nas salas de cinema, para rever as imagens em filme.
Não era para menos. Numa época de enorme incerteza e caos. Com tumultos e revoluções frequentes dentro de portas e uma geração de jovens a tombar lá fora, nas frentes de guerra em África e na Europa; sem certezas quanto à comida mais básica que, diariamente, se conseguia pôr na mesa lá de casa, era bem-vindo qualquer momento de torpor extraordinário, em que o risco é assumido por outros…
Houve, no entanto, quem, vendo a agilidade e rapidez que os Puertollano demonstraram nas subidas - acenando sempre às gentes que assistiam - não tenha conseguido evitar lembrar-se de idêntica aptidão de uns quantos para céleres escaladas políticas e sociais.
O povo, esse, estaria sempre na base, observando estupefacto tudo aquilo.
José e Miguel Puertollano
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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Hemeroteca Digital (cm-lisboa.pt)
Illustração Portugueza
II Série, nº614, 26.11.1917
II Série, nº615, 03.12.1917
A Capital
24.11.1917
25.11.1917
Cinemateca Portuguesa
ID CP-MC: 7000020
Cine-revista, nº 8, 1917-10-15
Cine-revista, nº 11, 15.01.1918
Revista Mensal Ilustrada, nº 1, 01.1928
Imagens
Arquivo Municipal do Porto
Arquivo Raul de Caldevilla
PT-CMP-AM/PRI/CLDV/4697/RC.83
PT-CMP-AM/PRI/CLDV/4697/RC.84
Arquivo Foto Guedes
PT-CMP-AM/PRI/FGD/F.NV:FG.M:9:340
Cinemateca Portuguesa
Filme Um chá nas nuvens, de Raúl Caldevilla
Joshua Benoliel – Illustração Portugueza