Instantâneos (107): quando o caçador acaba caçado
Dizer que D. Carlos era um atirador exímio, é pouco. A sua perícia, a pontaria, a velocidade e a capacidade de execução estavam muito acima dos melhores da sua época, também na caça, uma das suas atividades preferidas. Curioso é que, 18 anos antes do fatídico regicídio, alguém tenha vaticinado que tão insigne caçador, um dia, lamentavelmente, seria caçado.
O príncipe teria apenas nove anos de idade quando, pelos seus próprios meios e guardando segredo dos pais, procurou adquirir a sua primeira arma. Aos onze recebeu, do então rei de Espanha, uma pequena espingarda produzida em Toledo. Já então acompanhava D. Luís pelas tapadas, ganhava gosto e fama nas batidas.
Se, em Portugal, poderia pensar-se que os homens da corte se coibiam de fazer sombra ao jovem, deixando para a real pessoa os louros de um elevado número de peças de caça e os tiros mais certeiros, essa ilusão desvanece-se ao percebermos que a sua reputação seguia além-fronteiras.
Aos 19 anos venceu facilmente D. Afonso XII de Espanha, num torneio de tiro que se realizou em Vila Viçosa. A este feito muitos episódios se seguiram, como aquele em que acertou três vezes no mesmo orifício – no peito – de um boneco em tamanho natural colocado a meio perfil, à distância de 20 passos; ou aquela ocasião em que fez passar nove balas pelo mesmo furo, a 30 passos e com o braço esticado e imóvel durante minutos.
Sem o mais leve tremor, fazia passar sucessivas balas de pistola por buracos de fechadura.
E, entre muitas proezas deste género, note-se os dez tiros seguidos desferidos na mouche, dos quais é testemunho o próprio alvo, anotado por Thomaz de Mello Breyer e guardado na sala das pateiras, no Paço Ducal de Vila Viçosa.
Em 1895, ficou célebre a forma como, em Paris, venceu o também excelente atirador Félix Faure, presidente da República Francesa, e, nas numerosas caçadas, era sempre dos participantes mais proficientes, por cá ou nas visitas oficiais a Inglaterra ou França, onde alcançou, em 1905, um verdadeiro recorde mundial ao abater, só à sua conta, 800 faisões.
Escusado será dizer que, em tempos de grande insatisfação e turbulência, estas atividades do rei não eram apreciadas pelos seus detratores, que as usavam como arma de arremesso político.
Entendiam que, com o País a enfrentar dificuldades indesmentíveis, D. Carlos deveria dedicar mais tempo à governação e menos aos desportos.
Guerra Junqueiro, público opositor do rei e da própria monarquia, seria quem, de forma mais criativa e impressionante, manifestou este sentir, escrevendo o polémico poema Caçador Simão.
Foi em 1890, no rescaldo o humilhante ultimato britânico - que apanhou D. Carlos em início de reinado, marcando-o de forma indelével, negativa e injustamente.
Simão era o último da longa lista de nomes próprios d’El rei.
Sempre de forma indireta, o poeta alude aos últimos acontecimentos nefastos vividos em Portugal, com a morte de D. Luís, o referido ultimato e a encruzilhada que então se vivia. Perante toda a desgraça e desatino, coloca o monarca, despreocupadamente, a caçar… até que é ele a presa do derradeiro caçador.
Efetivamente, o nosso penúltimo rei, que não desconhecia o perigo que corria em tão conturbados momentos, cairia morto, no dia 1 de fevereiro de 1908, no regresso de mais uma caçada, a última, em Vila Viçosa.
Foi alvo de tiros de carabina, arma que, como a espingarda de caça ou de guerra, a pistola e o revólver, manejava com desenvoltura.
O desaparecimento de D. Carlos e do príncipe real, D. Luís Filipe, também assassinado nesse dia, foi determinante para o fim da monarquia em Portugal, que ocorreu apenas dois anos depois, durante o curto reinado de D. Manuel II. O desventurado.
Fontes
Luís Filipe Marques da Gama, El-Rei D. Carlos – Memória viva, 2ª edição, Lisboa, Edições Inapa, Média Livros SA, 2008.
Guerra Junqueiro - Camões - Instituto da Cooperação e da Língua (instituto-camoes.pt)
Por Elisabeta Mariotto
https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_I_de_Portugal
https://pt.wikipedia.org/wiki/Regic%C3%ADdio_de_1908
Museu da Presidência da República
https://www.arquivo.museu.presidencia.pt/
Arquivo Teófilo Braga, PT/MPR/ATB/CX095/078
Associação dos Autarcas Monárquicos
Imagens
Luís Filipe Marques da Gama, El-Rei D. Carlos – Memória viva, 2ª edição, Lisboa, Edições Inapa, Média Livros SA, 2008.
Estampa francesa dos finais do século XIX, coleção de D. Diogo de Bragança.
El Rei, trajando à alentejano.
Última caçada real na tapada de mafra, 1907.
Alvo anotado
Arquivo Municipal de Lisboa
Dom Carlos atirando aos pombos na Tapada da Ajuda, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/ACU/001060