Instantâneos (112): como a frágil Catarina venceu o poderoso inglês
A história da fixação do recorde automóvel entre Lisboa e Madrid é uma espécie de fábula da lebre e da tartaruga, mas sobre rodas. No final, ganhou a Catarina!
Foi uma disputa que apaixonou o público lisboeta durante os primeiros meses de 1909, com os periódicos a tomarem partido dos concorrentes, esgrimindo argumentos entre si.
Tudo começou meses antes, na varanda do Casino Monte Estoril, naquele ambiente perfumado de essências parisienses e charuto, ao som distante do rodopiar da roleta e das rabecas, que tocavam no salão - sem dúvida o local ideal para congeminar uma forma de dar nas vistas.
É aí que o representante em Portugal da British Automobiles desafia o diretor da revista Ilustração Portugueza para uma inesperada viagem a Madrid*.
Vivia-se o advento dos automóveis em Portugal e eram frequentes despiques entre fabricantes e vendedores de diferentes marcas, procurando mostrar ao público a sua supremacia perante o adversário.
Nesse contexto, a firma que representava os veículos britânicos prontificou-se a publicar vários anúncios bombásticos onde afirmava ter um dos seus Napier pronto a bater-se com uma viatura de outra marca, num trajeto de mim a dois mil quilómetros, a partir de Lisboa. Propositadamente, não fornecia detalhes sobre o percurso ou o destino, porque o objetivo não era cativar adversários, mas sim afirmar que nenhum havia aceite a corrida, porque ninguém apareceria na data e local marcados.
A questão é que, se o representante da British Automobiles foi esperto, houve alguém que o superou em esperteza: a Sociedade Portuguesa de Automóveis, agente da francesa De Dion Bouton.
Sem pretender entrar em confronto direto com o novíssimo e portentoso Napier de 40 cavalos, com 6 cilindros (na imagem), pegou no menos potente dos seus modelos – com apenas um cilindro e oito cavalos de potência. Tratava-se de uma voiturette pertencente a Carlos Bleck, já com dois anos de trabalho diário e muito conhecida em Lisboa (na primeira imagem).
Carinhosamente, tinham-lhe dado o nome de “Catarina”.
Aos comandos iam os experiente José de Aguiar (na próxima imagem) e Joaquim Correia. Partiram com horas de atraso em relação aos primeiros, mas acautelaram as formalidades necessárias para que a sua jornada, se bem-sucedida, pudesse instituir o recorde automobilístico Lisboa-Madrid.
Escusado será dizer que o Napier, sem se saber acompanhado na viagem, qual lebre do conto infantil, adotou um ritmo de passeio, com paragens para fotografias e confraternização, enquanto a “Catarina” seguiu como a tartaruga, focada em chegar o mais depressa possível. Alcançou Madrid meia hora antes do automóvel inglês e rapidamente fez saber que tinha fixado o recorde em “28 horas e pouco mais”.
Como a comparação entre os dois carros era impossível de fazer, pelas flagrantes diferenças, embora a luta de anúncios tenha prosseguido, foi a voiturette que acabou por vencer a contenda, ficando registado “o arrojo admirável” dos seus timoneiros, a fiabilidade da “Catarina”, os claros resultados desportivos e, comercialmente falando, o retumbante “triunfo para os representantes da Le Dion-Bouton”.
Resta acrescentar, para não nos animarmos em demasia, que, se esta marca fundada pelo marquês Jules Félix Philippe Albert de Dion de Wandonneera, era, em 1900, a maior produtora de automóveis à escala mundial, acabaria por estagnar e deixar de produzir veículos ligeiros de passageiros 32 anos depois. Já a Napier, criada em 1808, foi adquirida pela English Electric, em 1942.
Imagem de uma voiturette semelhante à Catarina, gentilmente enviada por Michael Edwards, do Dion Bouton Car Club UK.
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*Falo de José Alexandre Garcia Rugeroni e de Carlos Malheiro Dias. Com eles foi também o fotógrafo Arnaldo Fonseca e o condutor inglês Cundy.
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Fontes
Hemeroteca Digital de Lisboa
Illustração Portugueza, 12.04.1909.
O Tiro e Sport, 10.02.1909.
O Tiro e Sport, 20.02.1909.
O Tiro e Sport, 28.02.1909.
José Carlos Barros Rodrigues, A Implantação do Automóvel em Portugal (1895-1910), dissertação para a obtenção do grau de Doutor em História, Filosofia e Património da Ciência e da Tecnologia, Lisboa, Faculdade de Ciências e Tecnologia, outubro 2012.
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