Instantâneos (113): entre a esponja e o azeite
Um homem desce a calçada do Combro envolto no que parece ser uma capa de estranhas formas e texturas. Mas, nem tudo o que parece, é. Trata-se de um vendedor ambulante que transporta às costas o seu ganha-pão, fazendo uma pequena pausa no seu deambular, para pousar para o fotógrafo.
Está na rua lisboeta que, no século XVIII, também já foi “do Congro”, embora não haja notícia que por ali tenha sido visto qualquer peixe desta espécie. Nessa época, no entanto, já Portugal importava uma quantidade considerável de esponjas como as que este senhor transporta, enfileiradas em arames, fazendo com que se assemelhe a um polvo com vários tentáculos macios e leves.
Os principais exportadores de esponjas marinhas como estas são os países das Caraíbas e do Mediterrâneo e era destes últimos que o nosso País obtinha as que por cá circulavam, como atestam os registos que dão conta, nomeadamente, dos fardos deste produto – misturados com outras mercadorias, como isca de sola* - retidos para desinfeção no lazareto da Trafaria. Os seus proprietários imploram que sejam libertados e rapidamente enviados para alfândega ou que nem cheguem a passar por aquelas instalações da Margem Sul, onde se fazia a triagem e quarentena de passageiros e carga provenientes de destinos suspeitos de albergar moléstias pegadiças.
Os requerimentos são enviados ao Provedor-Mor de Saúde da Corte e do Reino e neles avultam as encomendas chegadas da atual zona de Itália, mais propriamente de Veneza ou Génova, por exemplo.
As esponjas, já se sabe, são organismos marinhos dos quais existem mais de nove mil espécies. As mais conhecidas são as usados desde a antiguidade, em operações cerimoniais, medicinais e de higiene, pelo seu poder absorvente.
Na sua Odisseia, Homero, põe um dos deuses a limpar-se com esponjas e, na Grécia antiga, há referência a banhos que os atletas olímpicos tomavam, com esponjas embebidas em azeite.
Em Portugal, no entanto, a conjugação destes dois produtos não é tão inocente. A utilização de esponjas, tornada obrigatória a partir do verão de 1839 para a limpeza dos potes aquando da medição e venda de azeite, originou críticas por parte dos vendedores e contratadores do Mercado do Azeite, em Lisboa.
Como é natural nestas situações, quem pagou tal norma foram os consumidores, porque se verificou um acréscimo de 50 reis por almude (nessa época, cerca de 16,8 litros) daquela gordura vegetal.
A Câmara Municipal de Lisboa queria “acabar por uma vez com o odioso exclusivo da Companhia de Medidores de Azeite”, não só porque assim determinava a nova Constituição, como também pela “imoralidade da maior parte dos homens de que ela se compõem”, pode ler-se em portaria. Abria-se assim a possibilidade para que qualquer possuidor de azeite pudesse livremente fazê-lo medir na Casa de Ver o Peso e dar-lhe o encaminhamento que quisesse.
As orientações eram claras, mas a polémica sobre as medidas esponjadas e não esponjadas continuou ainda por largo tempo.
Atualmente, as esponjas naturais marinhas continuam a ser um produto valorizado e com procura, mas foram substituídas nas atividades menos nobres por esponjas sintéticas, a partir de poliéster e poliuretano, inventados, respetivamente, em 1920 e 1952.
Na segunda imagem, podemos ver um vendedor ambulante de azeite – um azeiteiro - também em Lisboa, já no século XX.
……………
Na primeira imagem, captada no início do século XX na que, afinal, deveria ser corretamente denominada calçada do Cômoro – do alto, portanto – é ainda visível o antigo elevador Estrela-Camões, desenhado pelo engenheiro Mesnier do Ponsard, que o público carinhosamente denominava de machibombo** e que foi substituído pelos carros elétricos logo em 1913.
………………
*Isca-de-sola é o nome dado ao trachurus lathami, um peixe de água salgada que, seco, é usado como isca de pesca. Também se dá esta denominação ao agárico dos carvalhos, um cogumelo que nasce nestas árvores e era comum na preparação de medicamentos. Não consigo saber a qual destas “iscas” se referem os documentos, mas presumo que às primeiras, por serem organismos marinhos, como as esponjas.
**A palavra é portuguesa – usada em Moçambique como sinónimo de autocarros de transporte público – mas terá, dizem os entendidos, origem no inglês machine pump – bomba mecânica.
………..
Fontes
Arquivo Municipal de Lisboa
Informação sobre o novo regulamento do Mercado do Azeite, PT/AMLSB/CMLSBAH/CVP/004/0006/0024
Informação sobre a utilização de esponjas na venda do azeite, PT/AMLSB/CMLSBAH/CVP/004/0006/0025
Edital sobre um ofício referente à utilização de esponjas na venda do azeite, PT/AMLSB/CMLSBAH/CVP/004/0006/0027
Registo de um aviso a favor de José Jácome Massa
PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0044
Registo de um aviso a favor de Ângelo Dali
PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0052
Registo de um aviso a favor de Francisco Baldaque
PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0065
Registo de um aviso a favor de João Calaya
PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0072
Registo de um aviso a favor de Mateus Rascovich
PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0104
Registo de um aviso a favor de Agostinho Sichiel
PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0151
Registo de um aviso a favor de José Excameri
PT/AMLSB/CMLSBAH/PS/005/01/0173
Pharmacopêa Portugueza, Edição oficial, Imprensa Nacional, 1870, disponível em https://am.uc.pt/romulo/download/wqnDk8Kjw5jDjsOQwpJsZWRpZ2FmwpfCmcKZwplowphi/UCRC-RC-MNCT-615-PHA.pdf
Esponja (objeto) – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Porifera – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org)
Tradição da Esponja Marinha em Kalymnos – Turismogrecia.info – Blog
https://pt.wikipedia.org/wiki/Almude
https://lisboadeantigamente.blogspot.com/2016/02/calcada-do-combro-vendedor-ambulante-de.html
Imagens
Arquivo Municipal de Lisboa
Jaime Fragoso de Almeida - Elevadores Ascensores e Funiculares de Portugal. Lisboa : Clube do Coleccionador dos Correios, 2010, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/NEG/02/A81662
Marina Tavares Dias - Lisboa Desaparecida 7, Lisboa, Quimera, 2001, PT/AMLSB/POR/060206