Instantâneos (117): ao serviço de reis e presidentes
Durante meio século foi a sombra dos chefes de Estado de Portugal. Entrou como ajudante casual, foi moço de sala e ascendeu a mordomo e chefe de pessoal menor. Serviu 14 chefes de Estado, entre reis e presidentes. De D. Luís a D. Manuel II. Do “sábio” Teófilo Braga, ao general Carmona, com quem foi a África; passando por Sidónio Pais, que “mal dormiu durante todo o tempo que esteve em Belém”. Vital Ferreira Fontes persistiu em épocas de grande tumulto e mudança. Mesmo depois de se aposentar, permaneceu junto ao seu posto, pronto para ser chamado a servir, sempre com a mesma discrição e humildade que, provavelmente, tiveram peso nesta longevidade em tão delicadas funções.
A sua origem não augurava nada de bom. Foi exposto na roda, na Sertã, distrito de Castelo Branco, longe, portanto, dos centros de decisão onde faria a sua vida profissional.
Prestou serviço militar parcialmente em Lisboa e foi logo depois que o casamento de D. Carlos com D. Amélia - com consequente necessidade de desdobrar por dois lares o pessoal ao serviço da Casa Real - abriu as portas à sua contratação.
Estavam D. Luís e D. Maria Pia no trono de Portugal. Daí que o novo funcionário tenha ficado a morar em modesta casinha “emprestada”, a dois passos do Palácio Nacional da Ajuda e onde criou a sua própria família.
Uma das funções que primeiro abraçou foi a de dar corda aos muitos, antigos e complicados relógios existentes, mas cumpriu muitas outras tarefas, velando pelos pequenos pormenores que fazem toda a diferença em organizações complexas e com elaborados protocolos. Chegou a acompanhar deslocações, de palácio em palácio, com uma parafernália de objetos “às costas”, e ao estrangeiro, em viagens oficiais.
Lembra-se dos momentos de grande tensão, das alegrias pelos nascimentos de príncipes e da enorme dor resultante do regicídio; da instabilidade na mudança de sistema político; das ocasiões solenes, de pompa circunstância; dos beija-mãos de gala; das “faltas de chá” à mesa e dos assaltos aos bufetes, inusitados perante convivas que se esperam educados e ponderados.
Percebeu a grande dificuldade da Casa Real em gerir a subvenção que recebia e não chegava para tanta despesa, tal como a impotência dos primeiros presidentes, perante o tempestuoso desenrolar dos acontecimentos, que não controlavam.
Curiosamente, recorda mais as qualidades que os defeitos ou as “manias” dos “patrões” tão especiais que foi tendo, entre 1886 e 1936, bem como de muitos episódios anteriores, com antigos monarcas, que ouviu quando deu entrada na residência real.
As memórias de Vital Fontes, partilhadas e postas por escrito em 1945, quando já se aposentara, são uma rica fonte de informação sobre os acontecimentos de maior relevância, mas ainda mais, sobre os fait divers da vida de todos os dias de quem deteve os títulos e a responsabilidade, ainda mais do que o poder, em Portugal, limitado para os reis e os presidentes da república.
São uma oportunidade para conhecer a face humana destes ilustres portugueses e as especificidades do trabalho de quem está na sombra, na retaguarda, nos bastidores, mas é essencial para que tudo funcione, resplandeça e transmita uma imagem de harmonia que, algumas vezes, é apenas isso mesmo, apenas uma imagem projetada.
Fontes
Rogério Perez (compilação), Vital Fontes, Servidor de Reis e de Presidentes, Lisboa, Editora Marítimo-Colonial, Lda. 1945.
Arquivo da Presidência da República
PT/PR/AHPR/SG-GPE-GP/GP0201/2584/001
PT/PR/AHPR/SG-GPE-GP/GP0201/2584
PT/PR/AHPR-CH/CH0101-CH010104/CH01010401/D210721
PT/PR/AHPR-CH/CH0101-CH010101/D211656