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O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

O sal da história

Crónicas da história. Aventuras, curiosidades, insólitos, ligações improváveis... Heróis, vilões, vítimas e cidadãos comuns, aqui transformados em protagonistas de outros tempos.

Instantâneos (118): a única corista inesquecível do Teatro S. Carlos

 

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De prima-donas reza a história. As coristas não ficam na memória. São parte essencial do espetáculo, mas não é suposto que se distingam de qualquer forma. Anna Todo foi das poucas que se notabilizou e, embora não tenha sido pelas razões mais lisonjeiras, isso tornou possível encontrar referências à sua existência para que a possamos resgatar do esquecimento. Durante anos foi a “corista gorda” do maior teatro lírico do País.

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Sim, corista gorda. Era assim que era conhecida esta artista. Foi a sua obesidade – mais do que as capacidades vocais que inegavelmente também teria – que a tornavam querida do púbico.

Pelo que se lê, tirava partido da sua condição e tornou-se um elemento cómico muito apreciado pelo público do Real Teatro de São Carlos, chegando a ser caricaturada numerosas vezes por Rafael Bordallo Pinheiro. Hoje seria acusado de body shaming*…

Um bom exemplo da aparente invisibilidade dos coristas é a obra de fôlego de Francisco da Fonseca Benevides sobre a história do Real Teatro de São Carlos, desde a sua fundação, em 1793, até 1902. Nos dois volumes, com um total de 706 páginas, há incontáveis pormenores sobre espetáculos, cantores, convidados e até público, mas registam-se apenas quatro referências a coristas, três dos quais homens. A única mulher de coro mencionada, Rosina Stoltz, é francesa e merece referência do autor porque se tornaria primeira-dama.

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Anna ou Annita Todo (como também era conhecida), provavelmente de ascendência espanhola ou italiana, impôs-se no São Carlos como poucas. Os corpos de baile passavam, as vedetas iam e vinham, gerações de coristas sucederam-se e ela permaneceu, provavelmente…por ser gorda.

Isso talvez despertasse na assistência e nas consecutivas administrações teatrais algum tipo de contentamento, simpatia ou compaixão. É difícil saber.

A obesidade, que a tornou famosa, seria depois o que a condenaria, devido aos problemas de saúde associados, que a levaram a abandonar o palco.

Mas, seria a sua condição de gorda, igualmente, que a salvaria de morrer à fome, numa época em que não existia qualquer tipo de assistência social por parte do Estado e das entidades patronais.

Em 1889, Anna Todo adoeceu e o pai, Ignácio Todo, que também havia sido corista do São Carlos, estava igualmente enfermo.  

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Isto coincidiu com a morte do então empresário, António de Campos Valdez e do rei de Portugal, D. Luís. Na abertura dessa época lírica, em outubro, a sua ausência é notada, a par das restantes duas mencionadas, contribuindo para o ambiente soturno que então se viveu.

A sua doença e a situação em que tal a deixou comoveu o País.

A rainha Dona Amélia visitou-a na sua modesta casa** e entregou-lhe uma “valiosa esmola”, prometendo continuar a socorre-la mensalmente.

Vários jornais, entre os quais o Correio da Manhã, A Tarde e o Diário Illustrado, abriram subscrições para angariar dinheiro para a sua sobrevivência.

O mesmo fez o Grémio Literário e um conjunto de pessoas com camarote no teatro onde atuava.

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Curiosamente, entre os principais contribuidores para a sua sobrevivência, esteve o mesmo Fonseca Benevides e a sua mulher, mas vieram donativos de Norte a Sul de Portugal e, embora, com o passar dos anos, a subscrição se arrastasse, por vezes durante dias e dias, sem que fosse acrescentado um cêntimo, Anna Todo beneficiou da caridade alheia pelo menos até 1894, com o Correio da Manhã, então dirigido por Manuel Pinheiro Chagas, a fazer apelos diários de ajuda.

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Com o fim das alusões nos jornais, o próprio Pinheiro Chagas morre no ano seguinte, perde-se também o rasto à célebre corista.

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*É uma expressão muito em voga que se refere a uma “ forma de agressão que envolve criticar ou humilhar alguém através de comentários negativos e depreciativos acerca do corpo ou aparência física”. É, claro, censurável.

** São mencionadas três moradas de Anna Todo, todas em Lisboa: rua do Diário de Notícias, 86 e 89, 2º, e rua dos Fanqueiros, 122, 4º esq. 

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Agradeço a Maria Antónia Lázaro ter descoberto o verdadeiro nome da “corista gorda”, que depois permitiu esta pesquisa.

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Fontes

Correio da Manhã

11.11.1890, 20.11.1890, 25.11.1890, 27.11.1890, 29.11.1890, 24.01.1891, 21.11.1891, 30.12.1891, 28.05.1894,

Diário Illustrado

21.03.1890, 12.05.1890, 29.11.1890

 

Pontos nos IIs

05.11.1885, 05.11.1887, 22.12.1887, 12.01.1888, 26.04.1888, 05.11.1888, 26.04.1888, 12.12.1889

O Regenerador

19.06.1887

Jornal Público

15.04.2011

 

Maria Virgílio Cambraia Lopes, As Mulheres no Teatro-Flagrantes Satíricos, in Sinais de Cena, 2014.

 

Descrição de vários documentos no Museu Bordalo Pinheiro:

MRBP.GRA.2422, MRBP.GRA.0643

 

Body shaming | Ordem dos Psicólogos (ordemdospsicologos.pt)

TREMIFUSA - Definition and synonyms of tremifusa in the Portuguese dictionary (educalingo.com), citando a Illustração Portuguesa, s/d.

Top dez caritinas da Eurovisão - Quem sofre em casa (sufridoresencasa.com)

 

Imagens

Pontos nos II

05.11.1887, 26.04.1888, 05.11.1885

 

O António Maria

06.03.1884

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