Estas ruínas já foram a principal atração do jardim. Testemunhas silenciosas de tempos longínquos, de uma vivência que já não volta...ou cenário ardilosamente montado para encantar damas e cavalheiros em passeio, quadro pitoresco tão ao jeito da época em que nasceram duma imaginação mais habituada às efémeras construções teatrais, do que às obras destinadas à eternidade.
Corria o ano de 1858, quando o arquiteto-cenógrafo Giuseppe Cinatti se deslocou a Évora para traçar a nova a magnífica residência apalaçada do abastado lavrador José Maria Ramalho Dinis Perdigão, onde hoje está instalado o Tribunal da Relação. O projeto correu tão bem, que o italiano seria incumbido pelo município de idealizar profundas intervenções nessa área da cidade, em parte patrocinadas pelo seu mencionado “patrão” alentejano, procurando modernizar e embelezar aquela que seria a envolvente da sua nova casa. Foi essa vaga que transformou para sempre os terrenos baldios do Rossio de São Brás. Eram então um ermo conhecido pelas atividades indecentes que ali ocorriam, nada condicentes com os importantes conjuntos patrimoniais próximos: o convento de São Francisco e o antigo Paço de D. Manuel (na próxima imagem).
Cinatti – e outros que lhe seguiram - também acabaria por reabilitar estes monumentos, até porque se encontravam num estado deplorável de degradação e havia o argumento de ali instalar uma escola noturna, o tribunal judicial e, na praça fronteira, um mercado de que a cidade carecia. Mas, a maior novidade, bem ao sentir do espírito de meados do século XIX, foi a implantação de um enorme jardim de inspiração inglesa, um passeio público com recantos bucólicos, lagos, cursos de água, elementos escultóricos, caminhos, que serpenteiam por entre o arvoredo e os canteiros. Como cereja neste apetitoso bolo romântico coreografado para parecer natural, criou-se uma ruína! É nesse contexto que nasce este conjunto arruinadamente composto que passou a ser um dos principais elementos de atracão, local para encontros amorosos e observações platónicas da paisagem, pois servia como miradouro do belo espaço envolvente.
Cinatti não inventou as peças deste puzzle, mas teve a inteligência de conjugar elementos verdadeiramente históricos de diferentes épocas numa composição invulgar. Utilizou uma delapidada torre do século XIV, à qual foram acrescentadas ameias e artísticos merlões*, restos da antiga muralha e cantarias vindas de outras paragens, nomeadamente janelas de feição mudéjar do século XVI, resgatadas de a demolição ocorrida antes, do antigo Paço de D. Afonso de Portugal. Um insólito quadro forjado em pedra, deposta de forma a simular divisões próprias de uma velha casa senhorial, cujas linhas aludem à verdadeira e triunfal ruína, ali a dois passos: a Galeria das Damas do Paço de D. Manuel.
Em 1867, o jardim já dava um ar de sua graça, sendo considerado um dos melhores do País, sinal do engenho de Cinatti, que trabalhou gratuitamente nesta obra municipal. Circulava então uma subscrição pública para custear o gradeamento e corria-se contra o tempo para garantir algum tipo de restauro e adaptação dos edifícios históricos próximos, tentando ir ao encontro das exigências do Estado para os ceder à câmara. Mas, nem todos se preocuparam em restaurar. Caetano da Câmara Manoel, engenheiro de obras públicas encarregue de prosseguir os trabalhos, arrasaria o fecho do imponente Aqueduto da Água de Prata, mandado construir por D. João III; várias alas do antigo paço régio e do contíguo conjunto conventual, a ligação entre estes e dois claustros.
Diga-se, em jeito de conclusão, que estas não foram as últimas desgraças que afetaram este conjunto monumental, cuja cobertura abateu em 1881, foi depois convertido em teatro e ficaria muito destruído pelo fogo, em 1916. As intervenções referidas também não foram as derradeiras de Cinatti em Évora, onde estaria ligado à restituição do Templo de Diana à sua atual feição, também ela de ruína cenográfica. Estas também não são as únicas ruínas fingidas do País...e Cinatti, anos depois, até foi um dos responsáveis por uma célebre derrocada que lhe custou muito do prestígio granjeado até ali. …………
*Os merlões são os muros ou parapeitos existentes entre duas seteiras ou ameias, nos edifícios fortificados. São, errada e comummente denominados de ameias. À esquerda nesta imagem. ……… Refira-se que estas ruínas fingidas que tanto sucesso fizeram no século XIX e continuam a suscitar curiosidade ainda hoje não apresentam qualquer painel explicativo e encontram-se (novembro de 2024) vedadas ao público com fita balizadora que não ajuda nada ao quadro. ....................... Fontes Joana Esteves da Cunha Leal, Giuseppe Cinatti (1808-1879) Percurso e Obra, Dissertação de Mestrado em Historia da Arte Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Lisboa, 1996. Disponível aqui: http://hdl.handle.net/10362/64933 Celestino David, Évora encantadora: impressões, arte, história, |