Instantâneos (48): à martelada
O que é que um grupo de homens tão distintos, de chapéu alto e traje aprumado, faz de martelo na mão? Não estão com "cara de poucos amigos", por isso não será plausível que a cena seguinte seja desatarem à martelada uns aos outros. Também dificilmente parecem carpinteiros, com as indumentárias janotas que envergam. E quem é o mais destacado deste másculo comité, o único de vestimenta clara, ao centro?
O louro e jovem cavalheiro muito bem agasalhado para enfrentar o dezembro britânico é o príncipe real de Portugal. Em 1883, com apenas 20 aninhos, D. Carlos deslocou-se a Inglaterra e aproveitou para presidir à cerimónia de "bater da cavilha" de um navio português em construção nos estaleiros de Blackwall. É disso que trata essa imagem caída no esquecimento, tal como o ritual que retrata parece ter caído em desuso.
Na época, era comum os mais altos dignitários da nação, a começar pelos homens da família real, continuando com os seus conselheiros e ministros, participarem neste cerimonial simbólico, também habitualmente aberto ao público, aqui visivelmente na retaguarda, observando os "importantes" de longe, espreitando esta nesga de brilho nas suas vidas humildes.
O ato, também denominado de "bater o rebite" ou "cravar a cavilha mestra" ou na "caverna mestra" - em embarcações construídas em madeira - poderá ser comparável ao assentar a primeira pedra num edifício. Frequentemente, no momento da "martelada", gritava-se o nome com que o navio seria batizado.
Neste caso, o Thames Ironworks and Shipbuilding Company estava a laborar na corveta Afonso de Albuquerque, que seria lançada à água no verão do ano seguinte.
Tinha uma guarnição de 170 homens, pouco mais que 62 metros de comprimento, uma estrutura de ferro forrada a madeira e zinco, bem como propulsão mista, a vapor e à vela. Foi o primeiro navio de guerra português com iluminação elétrica a bordo.
Esteve no ativo até 1909, sobretudo em Angola e no Brasil, onde ainda participou na proteção aos cidadãos portugueses durante os tumultos que ali tiveram lugar aquando da revolta da Armada contra o governo, em 1893.
É claro que a expressão "bater a cavilha" se presta a variadas e imaginativas utilizações, que aqui não se podem reproduzir. Que o diga um dos maiores poetas de língua portuguesa, Gregório de Matos Guerra, que compreensivelmente ficou para a história como o "boca do Inferno", tendo usado esta e outras frases de forma bem mais "picante".
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Fontes
http://www.forumdefesa.com/forum/index.php?topic=2621.0
https://arquivohistorico.marinha.pt/details?id=14634
http://alernavios.blogspot.com/2010/09/afonso-de-albuquerque.html
http://www.osdicionarios.com/c/significado/cavilha
https://pt.wikipedia.org/wiki/Afonso_de_Albuquerque_(corveta)
Jornal O Distrito de Aveiro
nº91; 2º ano - 16 mai. 1862
nº293; 4º ano – 3 mai. 1864
Metalinguagem Fescenina de Gregório de Mattos Guerra, de Ruy Magalhães de Araujo - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em http://www.filologia.org.br/revista/14/08.pdf
Imagens
Museu de Marinha
https://ccm.marinha.pt/pt/museu
PT/MM/CF/043-001/06608
https://www.pinterest.pt