Instantâneos (54): a peste que “fechou” a cidade do Porto
Que estranha doença estaria a matar os galegos da rua da Fonte Taurina, no Porto? A dúvida instalou-se no longínquo verão de 1899, levando a autoridade de saúde a investigar. Os responsáveis ficaram incrédulos face às primeiras impressões, porque, ao que tudo indicava, tratava-se da peste, essa que já se pensava não voltaria a matar. E o poder político só acreditou quando, de Paris, vieram os resultados que confirmaram o que os investigadores portugueses, com Ricardo Jorge (na imagem) à cabeça, já tinham garantido: a peste de levante, como antes se chamava, agora batizada de bubónica, estava a dizimar as populações mais pobres e frágeis da cidade. Era preciso fechar tudo para controlar a doença!
A decisão de Ricardo Jorge, então médico municipal, não foi bem aceite, inicialmente pelos governantes, que temiam os resultados eleitorais dessa medida impopular e muito menos pelas “forças vivas” do Porto, com a imprensa e os comerciantes a serem responsáveis pelas atitudes mais violentas, chegando a por em causa a veracidade da epidemia.
Mesmo assim, a quarentena foi em frente.
A segunda cidade do País esteve isolada durante quatro meses. O cerco sanitário, imposto pela tropa, conteve o mal mas, apesar das medidas de desinfeção tomadas – na imagem, a casa onde teve início o surto e que foi incendiada por prevenção - não impediu o contágio interno sobretudo entre os muitos que viviam em espaços lotados e sem condições.
Foram infetadas 320 pessoas, 132 das quais morreram.
Talvez o mais famoso dos casos mortais tenha sido o de Luís Câmara Pestana (na imagem). O investigador esteve por duas vezes no Porto na arriscada tarefa de recolher fluidos e outros materiais biológicos dos pestilentos, para melhor conhecer a moléstia e assim contribuir para a sua cura.
Nessa ânsia, não tomou as devidas precauções, tendo usado as unhas, sem luvas, para espremer um bubão – gânglio inflamado – de um dos cadáveres. Em pouco tempo, percebeu que não resistiria. Isolou-se e fez questão que recolhessem a sua própria urina para ajudar ao conhecimento da maleita.
A sua morte, que teve grande impacto na opinião pública, mostrou - como se fosse preciso - que a peste não escolhe as vítimas, mas aproveita as imprudências.
Foi há 120 anos.
………………..
Nota: Ricardo de Almeida Jorge e Luís Câmara Pestana deixaram ampla obra e ainda hoje são nomes muito mencionados quando se fala em saúde pública. Ricardo Jorge deu nome ao instituto por si criado e que é hoje a principal referência em termos laboratoriais no País. Luís Câmara Pestana deu nome ao instituto bacteriológico especializado em investigação, hoje dependente da Reitoria da Universidade de Lisboa.
………………..
Já aqui antes falei de outras epidemias, como a gripe espanhola
Fonte
Hemeroteca Digital de Lisboa
http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/
Brasil-Portugal
nº16 – 16 set. 1899
nº20 – 16 nov. 1899
nº21 – 1 dez. 1899
Vidas surpreendentes, mortes insólitas na história de Portugal, de Ricardo Raimundo; A esfera dos livros – outubro 2011
O cerco da peste no Porto – Cidade, imprensa e saúde pública na crise sanitária de 1899>; dissertação de mestrado em história contemporânea de David Pontes; Faculdade de Letras da Universidade do Porto – 2012
Imagens
Arquivo Municipal do Porto
Foto Guedes
F-NV/FG-M/9/628(1)
F-NV/FG-M/9/1122
F-NV/FG-M/9/628(2)
Hemeroteca Digital de Lisboa
Brasil-Portugal
nº16 – 16 set. 1899
https://ars-curandi.wikia.org/pt/wiki/Lu%C3%ADs_da_C%C3%A2mara_Pestana